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Colunista

Ailane Brito

Da exoneração ao improviso: o povo exige mudança, não maquiagem

A queda de Rossieli mostrou que é possível enfrentar a máquina do poder quando a mobilização popular se organiza com lucidez e coragem

Da exoneração ao improviso: o povo exige mudança, não maquiagem

Foto: Reprodução/ IA

A queda de Rossieli Soares da Secretaria de Educação do Pará, celebrada com entusiasmo pelas bases populares, não foi fruto de decisões administrativas, tampouco de um súbito despertar ético do governo estadual. Foi resultado direto da resistência dos povos indígenas, quilombolas, estudantes, trabalhadores da educação e da pressão incessante das ruas, das redes, das ocupações e das assembleias de base. Foi o poder popular empurrando os muros de um sistema acostumado a mandar sem ouvir.

No entanto, mal o cargo de Rossieli esfriou, o governo Helder Barbalho tratou de anunciar uma “solução temporária” que já carrega o peso da desconfiança coletiva: o procurador-geral do Estado, Ricardo Sefer, assumiria interinamente a Secretaria de Educação. A notícia, publicada de forma quase protocolar, foi recebida por muitos com o mesmo sentimento que precedeu a ocupação da Seduc: indignação.

Sim, ele mesmo. O procurador-geral do Estado que já acumula funções estratégicas na máquina pública e que, agora, se vê no comando da pasta da educação, mesmo sem qualquer trajetória relevante ou experiência consolidada no campo educacional. Para quem esperava mudanças estruturais, a nomeação soa como deboche. Para quem lutou nas ruas, ocupações e greves, soa como traição.

A falsa neutralidade de uma nomeação “técnica”

Enquanto o povo reivindica escuta e representatividade, o governo responde com centralização e tecnocracia. Nomear Sefer —um operador político com vasto trânsito nos bastidores do governo, mas nenhuma vivência ou compromisso explícito com a educação pública — é insistir na lógica da tecnocracia e da gestão à distância, a mesma que feriu profundamente as comunidades educacionais da Amazônia paraense nos últimos anos. O mesmo Ricardo Sefer esteve diretamente vinculado a decisões jurídicas que sustentaram a imposição da Lei 10.820/2024, aquela que tentou empurrar educação remota para populações sem internet, energia ou sequer acesso à escola física.

Dizer que sua nomeação é “interina” não basta para tranquilizar quem luta cotidianamente pela educação em territórios atravessados pela exclusão e pelo abandono do Estado. O interino de hoje pode muito bem ser efetivado amanhã, e, enquanto isso, decisões são tomadas, contratos continuam em vigor e políticas públicas seguem seu curso — quase sempre sem a escuta dos que mais precisam ser ouvidos. Mas a população está atenta. Sabe que, por trás dos nomes e cargos, há um projeto político sendo empurrado goela abaixo. E esse projeto não nasceu com Rossieli nem termina com ele.

A Amazônia paraense não é laboratório de gestão

É inaceitável que, após uma greve histórica e uma ocupação corajosa da sede da Seduc por mais de vinte dias, a resposta do governo seja colocar na pasta da educação alguém alheio às pautas, às dores e às esperanças da comunidade escolar. A Amazônia paraense não é laboratório para testes de gestão. A educação não é moeda de barganha política.

A sensação é de que o governo subestima a inteligência coletiva da sociedade paraense. Tenta convencer-nos de que o problema era uma pessoa — Rossieli — e não um projeto político que continua intacto. Tenta vender a narrativa de uma reestruturação, quando o que temos é um rearranjo estratégico para conter a insatisfação popular e ganhar tempo até que o clima político se acalme. Mas a Amazônia já entendeu: não adianta mudar o gerente se o produto continua sendo o mesmo.

A educação paraense está em estado de alerta. Movimentos sociais, sindicatos, coletivos de educadores e organizações indígenas seguem vigilantes. Eles sabem que o poder, quando acuado, recorre ao improviso para ganhar tempo, enquanto prepara novos ataques. A exoneração de Rossieli foi uma vitória, sim, mas não basta trocar a cabeça visível se o corpo da estrutura permanece o mesmo.

Se o governador Helder Barbalho achou que bastava afastar Rossieli para esfriar os ânimos, subestimou a força da organização popular. O povo que ocupou, denunciou e resistiu não quer tampão, quer transformação. Não aceita mais decisões unilaterais de gabinetes refrigerados que ignoram o calor real das salas de aula, das aldeias e das periferias.

Educação não se improvisa

Estamos diante de um momento crucial. A queda de Rossieli mostrou que é possível enfrentar a máquina do poder quando a mobilização popular se organiza com lucidez e coragem. Mas esse mesmo momento exige vigilância constante para que os retrocessos não retornem pelas portas laterais. Uma gestão pública que respeite a educação como direito coletivo e bem comum não se improvisa. Ela se constrói com base em compromissos concretos, participação social e respeito às diversidades do território amazônico.

As comunidades educacionais — de professores a estudantes, de lideranças indígenas a conselheiros escolares — estão dizendo em alto e bom som: não aceitamos soluções paliativas, nem dirigentes sem compromisso com a realidade das nossas escolas. Não queremos mais gestores que veem a educação como planilha. Queremos quem compreenda a educação como território de vida, de luta e de pertencimento.

O povo exige mais: quer investigação e responsabilização

As reivindicações que tomaram as ruas e os corredores da Seduc não eram apenas por uma exoneração. Eram, e continuam sendo, por uma transformação profunda da política educacional no Pará. Isso inclui a revogação de medidas excludentes, a reestruturação dos contratos firmados às pressas com empresas de tecnologia educacional, a reconstrução do diálogo com os territórios e, sobretudo, a investigação dos gastos milionários da pasta sob a gestão de Rossieli.

Há indícios, há documentos, há relatos — e há um clamor crescente por apuração, responsabilização e justiça. A população não aceitará que as denúncias sejam enterradas sob a poeira de uma mudança simbólica. A luta continua porque os danos foram reais e precisam ser reparados com mais do que discursos de ocasião.

Por uma nova educação na Amazônia

O que está em disputa, mais do que nunca, é o projeto de educação que queremos para a Amazônia. Um projeto construído com o protagonismo dos povos da floresta, dos ribeirinhos, dos quilombolas, dos trabalhadores urbanos e rurais. Um projeto que reconheça e valorize os saberes ancestrais, a diversidade linguística e cultural, os desafios logísticos e ecológicos do nosso chão. Um projeto que seja, de fato, nosso.

A luta por essa educação não começou com Rossieli e, tampouco, termina com Sefer. Ela é longa, coletiva e inadiável. E seguirá viva enquanto houver quem se recuse a aceitar uma escola que ensina a obedecer, mas não a transformar. A floresta continua falando. A ocupação ensinou. A greve ecoa. E os olhos do povo estão abertos.

É hora de escutar os educadores. De reconhecer os saberes ancestrais. De construir com os territórios, e não sobre eles. Nomear um secretário que dialogue com os movimentos sociais, que compreenda a complexidade amazônica e que assuma um compromisso radical com a educação pública, popular, antirracista e decolonial.

Até lá, seguiremos nas ruas, nos rios, nas redes sociais,  com a mesma clareza de sempre: não há futuro possível sem educação libertadora. E não há educação libertadora sem participação popular.

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