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Diálogos do Norte

Andrea Alves fala sobre o cotidiano de uma agente de saúde quilombola

Andrea Alves atua como agente de saúde no Muratubinha, onde cuidado, resistência, escuta e ancestralidade estruturam o seu trabalho em comunidade dentro do contexto quilombola

Andrea Alves fala sobre o cotidiano de uma agente de saúde quilombola

Foto: arquivo pessoal

A atuação de agentes comunitários de saúde em territórios quilombolas vai muito além de procedimentos técnicos. É uma prática moldada pelo território, pela ancestralidade e pela escuta cotidiana das comunidades. Na comunidade Muratubinha, município de Óbidos, estado do Pará, Andrea Alves constrói sua trajetória entre o cuidado e a resistência, sendo referência no diálogo entre saúde, pertencimento e compromisso com o coletivo.

Com mais de 13 anos de atuação como agente de saúde, Andrea é também liderança comunitária e voz ativa no movimento quilombola. Sua prática é marcada por vínculos reais com as famílias, pela escuta atenta das demandas locais e pela convicção de que o cuidado é um ato político. A entrevista a seguir integra o quadro Diálogos do Norte, que busca valorizar trajetórias de quem contribui diretamente para o fortalecimento dos territórios tradicionais e para o desenvolvimento local.

Durante evento quilombola

Andrea Alves. Foto: arquivo pessoal

Quem é Andrea Alves?

Sou uma mulher, mãe, esposa, filha. Uma mulher quilombola e ribeirinha, cheia de sonhos e com perspectivas melhores para as famílias que acompanho. Uma mulher que sabe o seu lugar e que não se cala diante das injustiças, que não se oprime e não permite que lhe digam que ela não é capaz. Sou uma mulher de opinião própria, que aprende todos os dias, no desenvolvimento do meu trabalho, a ser uma pessoa melhor.

Também, sou uma mulher que luta pelos seus objetivos, que sofre, sente, tem suas emoções, que muitas vezes se frustra, que chora, mas não desiste de lutar e de correr atrás das coisas em que acredita. Costumo dizer que sou uma mulher que verga, mas não cai. Esses 13 anos de trabalho me tornaram alguém com mais garra e vontade de fazer a diferença na vida das pessoas. Isso, para mim, é essencial: ser uma profissional que ama o que faz, porque este é o meu território — e eu escolhi estar aqui como agente de saúde.

Você atua há 13 anos como agente comunitária de saúde dentro do seu território. Quais foram os maiores aprendizados e as principais dificuldades observadas nesse tempo?

Meus maiores aprendizados, como agente de saúde e como pessoa, foram entender que nós, seres humanos, adoecemos e, muitas vezes, precisamos apenas ser ouvidos e acolhidos. Cada pessoa carrega uma história, boa ou ruim, e uma dor. E cada um de nós pode fazer a diferença na vida do outro.

Ser agente de saúde exige amor e dedicação. Enfrentamos desafios que, às vezes, dependem exclusivamente da nossa força de vontade para serem resolvidos, e outros que não estão sob nosso controle — como trabalhar no período da enchente, quando corro riscos reais, como ser picada por uma arraia ou encontrar uma cobra. Também há dificuldades com algumas famílias que resistem ao atendimento e se recusam a receber visitas. Mas sigo em frente, acreditando na importância do meu trabalho.

Seu pai foi uma das lideranças fundadoras do movimento quilombola no Muratubinha. Como essa herança influencia sua atuação política e comunitária hoje?

Meu pai exerceu, por muito tempo, a atividade de liderança quilombola e foi um dos que ajudaram a fundar o movimento na comunidade. Acabei herdando esse envolvimento. Aprendi a gostar do movimento quilombola através dos relatos dele. Quando comecei a participar das atividades, senti que estava me encontrando como quilombola, e hoje compreendo a importância do nosso papel dentro da comunidade e da sociedade.

Pode citar uma ação coletiva que tenha transformado a realidade da comunidade?

Uma das ações que mudou significativamente nossa realidade foi a chegada da energia elétrica. Essa conquista só foi possível graças à luta coletiva, especialmente das pessoas envolvidas no movimento quilombola. É um marco para nossa comunidade e para o fortalecimento da nossa organização.

O trabalho de agente comunitária muitas vezes envolve lidar com histórias difíceis. Como você cuida da sua saúde mental e emocional ao lidar com casos delicados, como situações de violência?

É muito difícil lidar com casos de violência dentro do território. Tenho trauma com esse tipo de situação porque já fui vítima de violência no ambiente de trabalho. Sempre que enfrento casos assim, procuro fazer meu papel, orientando as pessoas envolvidas. Ao mesmo tempo, busco cuidar da minha saúde emocional por meio de terapias, para que essas situações não me afetem de forma profunda. Sei o quanto isso pode ser pesado, então aprendi a buscar ajuda também para mim.

Você está cursando o técnico em agente comunitária de saúde. De que forma essa formação tem contribuído para sua atuação?

O curso técnico tem ampliado minha visão profissional. Tem me ajudado a entender melhor o papel do agente de saúde, e a prestar um atendimento mais humano e eficaz. A formação me ajuda a ouvir com mais atenção e a adaptar meu trabalho às necessidades de cada pessoa atendida. É uma forma de melhorar constantemente e oferecer um cuidado mais completo.

Como mulher quilombola e liderança em seu território, o que significa para você ocupar espaços institucionais e de representação?

Estar nesses espaços me faz refletir que o nosso lugar é onde quisermos estar. Representar a Secretaria de Saúde do meu município e o SUS é algo extraordinário. É uma grande responsabilidade, ainda mais por sermos mulheres. Ocupar um lugar na sociedade e no território é uma forma de mostrar que somos capazes, que podemos ser o que quisermos — desde que haja respeito mútuo. Essa representatividade é fundamental.

No cotidiano, como você promove a saúde da sua comunidade? Pode citar práticas de prevenção e ações desenvolvidas?

No meu dia a dia como agente de saúde, sempre promovo ações de prevenção, orientação e promoção da saúde. Trabalho orientando sobre doenças como HIV, hipertensão, diabetes, entre outras. Por exemplo, com pessoas hipertensas, explico a importância das consultas regulares, da alimentação saudável, da prática de exercícios físicos e do uso correto dos medicamentos.

Também realizava rodas de conversa sobre saúde mental com moradores da comunidade. Muitas pessoas sentiam necessidade de participar desses encontros. A iniciativa foi interrompida, mas pretendo retomá-la. Sempre reforço que a mente também precisa de cuidado, pois quando a mente adoece, o corpo adoece junto.

Você acompanha de perto a realidade de saúde da sua comunidade. Na sua opinião, o que falta nas políticas públicas para que o atendimento básico de saúde chegue com mais dignidade às populações quilombolas?

Tivemos um grande avanço nos atendimentos de saúde na comunidade. Há alguns anos, era preciso ir até a sede do município para realizar pesagens do Bolsa Família, tomar vacinas e fazer consultas básicas. Hoje, esses atendimentos acontecem dentro da própria comunidade, graças ao Programa da Estratégia de Saúde Ribeirinha, que leva os serviços das unidades de saúde até o território.

Ainda existem limitações, mas reconhecemos os esforços. A comunidade é grata ao gestor do município e à Secretaria de Saúde, que têm articulado formas de melhorar o acesso. Atualmente, não precisamos mais correr os mesmos riscos atravessando o rio para buscar um atendimento básico. Apesar disso, ainda faltam políticas públicas voltadas especificamente para a nossa realidade. Com luta e persistência, acreditamos que será possível avançar ainda mais.

Que mensagem você deixa para outras mulheres negras e quilombolas que atuam em espaços de cuidado e resistência?

A mensagem que deixo é: mulheres, ocupem os espaços que desejam ocupar. Não deixem ninguém calar a voz de vocês. Sejam fortes, resilientes e busquem sempre o melhor para os seus territórios. Toda mulher tem valor, seja ela negra, parda ou branca. Cada uma carrega um dom. Nunca desistam dos seus sonhos.

Cuidem da saúde mental, cuidem do seu emocional. Não deixem para amanhã o que podem fazer hoje. Acreditem: nunca é tarde para quem tem coragem de enfrentar os desafios da vida. Cada uma de nós é especial. Sigam em frente.

Ao compartilhar sua experiência, Andrea Alves revela como o trabalho em saúde, quando realizado com vínculo comunitário, torna-se uma ferramenta de transformação. Sua atuação reforça a importância de políticas públicas comprometidas com a realidade dos territórios tradicionais e mostra que a escuta ativa, o cuidado e a presença constante são formas de construir dignidade e justiça social a partir da base.

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