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Diálogos do Norte

Ailane Brito fala sobre educação ambiental, cultura e protagonismo amazônida

Na estreia do quadro Diálogos do Norte, Ailane Brito, comunicadora popular, reflete sobre desafios, identidades e territórios

Ailane Brito fala sobre educação ambiental, cultura e protagonismo amazônida

Foto: Divulgação

O quadro Diálogos do Norte, realizado pelo Portal Norte em Foco, estreia com a participação de Ailane Brito, mulher negra, amazônida, filha de pai de raiz quilombola, técnica em Agroecologia, estudante de Pedagogia pela UFOPA, colunista, artista e ativista. Com forte atuação nos campos da educação, comunicação e sustentabilidade, Ailane alia conhecimento técnico, sensibilidade artística e compromisso comunitário em tudo que realiza.

Na entrevista a seguir, Ailane Brito compartilha reflexões sobre educação, meio ambiente, ancestralidade, juventude, cultura e fé, revelando a força e a sensibilidade de quem transforma o mundo a partir do território em que vive.

Quem é Ailane Brito?

Sou uma mulher amazônida, nascida e criada em Óbidos, no oeste do Pará. Carrego em mim as raízes do meu pai, quilombola, e da minha mãe, vinda de uma família rural. Cresci em um lar cristão, onde aprendi desde cedo valores como solidariedade, fé, respeito e resistência. Desde criança, cantava na igreja; na adolescência, inicie minhas apresentações em festivais de música gospel. Sempre fui muito ativa, especialmente no grupo de jovens. Foi lá que surgiu a oportunidade de apresentar um programa de rádio voltado para o público jovem. Eu tinha 16 anos quando o líder dos jovens me fez o convite e me apresentou ao dono da rádio. Nesse mesmo dia, comecei a aprender a técnica de som: como operar os equipamentos e entrar ao vivo. Ele fez um teste comigo e logo me contratou para integrar a equipe. Passei, então, a trabalhar durante as manhãs, pois estudava à tarde. Inicialmente, atuei como técnica de som e também comecei a apresentar o noticiário das 11 horas da manhã. Aos sábados, apresentava o programa Momento gospel, da minha igreja. E aos domingos, era o dia inteiro na rádio. Iniciava com um programa infantil, ficava na técnica de som para o grupo de idosos do Pau e Corda e, no finalzinho da tarde, apresentava o programa romântico “O amor está no ar.” E assim vivi mais de 2 anos essa experiência como radialista. Foi um tempo muito bom. Mas, assim que conclui o ensino médio, casei e logo veio a maternidade e decidi viver exclusivamente para a minha família.

Depois de 16 anos afastada dos estudos, retomei minha caminhada com o curso técnico em agroecologia. Ainda durante essa formação, iniciei a graduação em Pedagogia. Nesse período, fui convidada a integrar a equipe do portal Norte em Foco, onde passei a assinar uma coluna com artigos de opinião sobre temas que me atravessam e mobilizam.

Foi no portal Norte em Foco, ao escrever meus artigos, que descobri algo muito importante sobre mim mesma: eu tinha uma base, uma direção. Aos poucos, percebi que meus textos revelavam um propósito, um nicho que dava sentido à minha voz. Escrever sobre as vivências da Amazônia, os direitos das mulheres, a educação popular e os conflitos socioambientais não era apenas expressão — era também resistência, identidade e missão. Ali, compreendi que minha trajetória não era isolada, mas parte de algo maior, e que minhas palavras podiam ecoar para além de mim.

Pouco tempo depois, recebi outro convite, desta vez do jornalista Douglas Fernandes, para colaborar com o portal InfoRevolução. Desde então, venho trilhando esse caminho de escrita, comunicação e engajamento social, buscando sempre dar visibilidade às vozes da Amazônia e fortalecer a luta por justiça, equidade e respeito.

Como você enxerga a importância da educação ambiental nos contextos urbano e rural de Óbidos? Na sua avaliação, o município está preparado para desenvolver políticas consistentes nessa área?

Em ambos os contextos, educar é semear respeito pela vida e pelo território. É por meio da educação que podemos construir uma relação mais harmoniosa entre as pessoas e a natureza.

Apesar de algumas iniciativas isoladas, ainda falta ao município um plano estruturado, que envolva a população de forma contínua, respeite os modos de vida locais e forme agentes multiplicadores, especialmente nas escolas. Acredito que temos potencial, mas ainda não estamos preparados. É preciso vontade política, escuta ativa e compromisso principalmente dos órgãos competentes. Muitas ações são isoladas e não se conectam a um plano estratégico de longo prazo que envolva diferentes setores da administração municipal e da sociedade civil. Vejo que há uma carência de profissionais capacitados especificamente em educação ambiental e de orçamento dedicado para programas e projetos na área.

Qual é o papel da mulher na construção de uma sociedade mais sustentável e consciente? De que forma sua atuação combina saber técnico, sensibilidade artística e protagonismo feminino?

Nós mulheres, em diversas culturas e contextos, frequentemente atuamos como guardiãs do lar e da comunidade. Isso se traduz em uma preocupação natural com o bem-estar a longo prazo, o que nos torna agentes poderosas para a sustentabilidade. Por exemplo, nós costumamos ser as principais responsáveis por decisões de consumo dentro de casa, e dessa forma podemos optar por produtos mais ecológicos, evitando desperdícios e incentivando a reciclagem.

Sou uma mulher amazônida que escreve com o coração atento às injustiças. Na escrita dos meus artigos, busco unir o que aprendo na vida, na agroecologia e na pedagogia. Acredito que a palavra também é ferramenta de denúncia e conscientização e que tem o poder de provocar mudanças.

Você é colunista em mais de um veículo de comunicação. Como é o desafio de manter esse diálogo com o público, levantar pautas relevantes e, ao mesmo tempo, equilibrar outras responsabilidades da sua vida?

Ser colunista em mais de um veículo é um desafio e, ao mesmo tempo, um privilégio. Escrever é uma forma de continuar aquele trabalho que comecei lá atrás, aos 16 anos, quando trabalhava na rádio: dar voz ao que importa, levantar pautas que atravessam o cotidiano das pessoas e provocar reflexões a partir do território em que vivo.

As pautas não nascem só da minha vivência pessoal, mas do que vejo, ouço e sinto ao conversar com as pessoas, acompanhando as lutas sociais, os noticiários e principalmente observando o que não está sendo dito nos meios tradicionais.

Conciliar isso com os outros papéis que desempenho, como o de ser mãe, esposa, estudante de Pedagogia, é um exercício desafiador e desgastante, eu preciso estar em busca constante de equilíbrio. Às vezes, escrevo no intervalo entre uma tarefa e outra, às vezes na madrugada. Não é nada fácil, mas escrever pra mim, é compromisso com o coletivo. E enquanto eu puder, estarei nesse caminho.

Como estudante de Pedagogia, que perspectivas você traz para a relação entre educação e meio ambiente? A escola tem sido um espaço fértil para esse tipo de debate?

Eu vejo a educação e o meio ambiente como dimensões que não podem caminhar separadas. A relação com a natureza não é algo externo à escola, ela faz parte da vida dos estudantes, especialmente em territórios como o nosso, onde o rio, a floresta, o clima e os saberes tradicionais estão presentes no cotidiano.

Acredito que a educação ambiental precisa ir além de datas comemorativas e conteúdos decorativos. Ela deve ser construída com base no território, nas vivências e nas experiências das comunidades. A escola tem o potencial de ser um espaço fértil para esse debate, porém, ainda reproduz uma lógica distante da realidade dos alunos, especialmente em contextos amazônicos e rurais.

A minha perspectiva é de uma educação que cultive a consciência ecológica desde cedo, que valorize os saberes ancestrais, os modos de vida sustentáveis e que estimule o cuidado com o bem comum. Educação e meio ambiente, juntos, formam a base para uma sociedade mais justa, solidária e viva. E acredito que nós, futuros educadores, temos o papel de semear isso.

Como a arte — especialmente a música e a poesia — se conecta com sua luta por sustentabilidade e educação? Você acredita que o caminho artístico potencializa a conscientização ambiental?

Sim, acredito que o caminho artístico potencializa enormemente a conscientização ambiental. Enquanto a informação técnica informa a mente, a arte desperta a emoção e o senso de pertencimento. Uma letra de música ou um poema sobre a beleza da natureza ou a dor da sua destruição pode criar uma memória afetiva e um senso de urgência que transcendem os dados. Elas nos ajudam a internalizar a mensagem, tornando a conscientização mais duradoura e motivadora.

Óbidos é uma cidade de forte tradição cultural. Como você avalia a valorização das vozes femininas e negras nas narrativas locais, especialmente quando se fala de meio ambiente e educação?

Infelizmente, observo pouquíssimas iniciativas e movimentos locais que buscam ativamente dar visibilidade a essas narrativas. Embora o reconhecimento da importância dessas vozes possa existir em alguns círculos, a prática de efetivamente valorizá-las e integrá-las ainda é muito incipiente.

Em sua vivência como comunicadora e educadora, quais são os maiores desafios que você enfrenta ao falar de sustentabilidade e justiça ambiental em comunidades da região?

O maior desafio ao falar de sustentabilidade é tornar esse tema acessível, relevante e enraizado na realidade das pessoas. Sustentabilidade, muitas vezes, ainda é vista como algo distante, associada apenas a reciclagem, floresta ou grandes eventos ambientais, quando, na verdade, ela está no prato de comida, no modo de produzir, no cuidado com a água, na relação com a comunidade e no jeito como educamos as próximas gerações.

Como comunicadora, o desafio é traduzir esse tema com sensibilidade e objetividade, sem perder a essência.

Como educadora, há o desafio de romper com a visão urbana e eurocentrada que muitas vezes domina os materiais didáticos, e afirmar um olhar amazônida, que reconheça o valor das práticas locais, da agricultura familiar, das lutas sociais e da sabedoria ancestral.

É desafiador, sim. Mas é também necessário e potente. Porque quando a comunicação e a educação se encontram com propósito, elas transformam. E é nisso que acredito.

Durante meu curso em Agroecologia, vivenciei de perto uma das dificuldades que os agricultores enfrentam: o uso de agrotóxicos na produção familiar. No projeto de conclusão de curso, investigamos essa prática e percebemos que muitos produtores utilizam produtos químicos por desconhecimento dos danos que causam à saúde, às plantas e ao meio ambiente, e também por serem soluções rápidas contra pragas e doenças, mesmo que a longo prazo sejam prejudiciais.

Diante disso, meu grupo de trabalho e eu, produzimos em 2023 uma cartilha sobre o controle agroecológico de pragas e doenças, com informações voltadas especialmente para o manejo das culturas de hortaliças e mandioca. Nossa intenção era simples e ao mesmo tempo profunda: levar informação acessível para os agricultores da comunidade onde desenvolvemos o projeto. A cartilha orienta o agricultor a identificar as pragas e doenças mais comuns, compreender o que causa os danos e aplicar formas de controle agroecológico eficazes, com alternativas que respeitam a vida, a saúde humana e o meio ambiente.

Essa experiência me mostrou que o maior desafio, muitas vezes, não é a falta de vontade, mas a falta de acesso à informação. E exatamente nesse contexto que a educação e a comunicação, são ferramentas de transformação social e ambiental. Acredito que, mesmo sem grandes palcos ou eventos, pequenas ações como essa têm um impacto enorme, especialmente quando são feitas com escuta, diálogo e compromisso com a comunidade.

Além de educadora e colunista, você é mãe, empreendedora e mulher de fé. Como todas essas dimensões convivem no seu dia a dia?

Conciliar todas essas dimensões, não é nada fácil. Na verdade, muitas vezes é preciso sacrificar uma dessas ocupações para suprir a outra. Tem dias em que a maternidade exige mais, outros em que os estudos ou a escrita pedem prioridade, e a fé é o que me sustenta para continuar.

Eu acredito que o sacrifício faz parte do caminho. E não vejo como algo pesado, mas como uma escolha consciente. O que me fortalece é a certeza de que Deus é o meu socorro bem presente. Nos dias em que me sinto sobrecarregada, oro, peço forças e auxílio. É na fé que encontro a renovação necessária para continuar, é nos meus filhos que vejo o futuro que quero ajudar a construir, e é na escrita que eu respiro e organizo meus pensamentos.

Nem tudo sai perfeito, e tá tudo bem. Não é sobre dar conta de tudo o tempo inteiro, mas sobre caminhar com propósito, mesmo entre os tropeços.  Quero que a minha existência tenha sentido não só para mim, mas também pra quem caminha ao meu lado ou se inspira nas minhas palavras. É isso que me move todos os dias.

Que caminhos você acredita que Óbidos e região ainda precisam trilhar para integrar de forma efetiva as práticas sustentáveis nas políticas públicas e na cultura popular?

Acredito que a nossa Óbidos e região ainda precisam trilhar caminhos que fortaleçam a educação ambiental desde a base, valorizando os saberes tradicionais e as práticas dos povos originários e ribeirinhos. É essencial integrar o cuidado com a natureza às políticas públicas de forma contínua, com investimento em agroecologia, saneamento básico, gestão de resíduos e fortalecimento da agricultura familiar. Além disso, é preciso fomentar a cultura popular como aliada da sustentabilidade, promovendo feiras, encontros e expressões artísticas que despertem o pertencimento e a responsabilidade coletiva com o território.

Que projetos ou ações você sonha realizar nos próximos anos, especialmente voltados à educação ambiental, à comunicação popular ou à formação de jovens?

Eu sonho em criar um projeto chamado “Jornalistas Mirins da Amazônia”.

Seria uma iniciativa que capacitaria jovens de comunidades ribeirinhas e quilombolas de Óbidos a se tornarem comunicadores ambientais. Eles aprenderiam a produzir seus próprios conteúdos, desde podcasts e vídeos curtos até boletins informativos comunitários, utilizando ferramentas simples, como celulares.

A ideia é que esses jovens se tornem os repórteres de suas próprias realidades, contando histórias sobre a biodiversidade local, os desafios ambientais que enfrentam, as soluções sustentáveis que suas comunidades já aplicam e a importância de preservar seus rios e florestas. Eu os auxiliaria na técnica de comunicação e na curadoria do conteúdo, mas a voz e a perspectiva seriam deles.

Seria um projeto simples, de baixo custo, mas creio que teria um impacto gigantesco, empoderando esses jovens a serem protagonistas da educação ambiental e da comunicação popular em suas próprias comunidades.

Por fim, que mensagem você deixa ao povo obidense?

Que possamos olhar para nossa Amazônia não apenas como recursos, mas como parte viva de quem somos. O futuro de Óbidos está em nossas mãos e na nossa capacidade de valorizar o que é nosso.

Com esta entrevista, Diálogos do Norte inaugura sua proposta de contribuir para o debate público a partir da escuta qualificada de agentes sociais e políticos que atuam na região. O quadro busca registrar e divulgar trajetórias, pautas e experiências que ajudam a compreender os desafios e potencialidades do território amazônico, fortalecendo o papel da comunicação na valorização das identidades locais e na construção de políticas voltadas ao desenvolvimento sustentável e inclusivo.

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