Nelson Rodrigues, ao identificar o “complexo de vira-latas” no comportamento brasileiro, descreveu a postura de inferioridade que muitos brasileiros adotam em relação ao resto do mundo. Ele afirmou: “Por ‘complexo de vira-latas’ entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo.” Décadas depois, esse fenômeno não só persiste, como se intensifica a passos largos, se manifestando em várias esferas da sociedade — do esporte à cultura, passando pela política e pela tecnologia.
Essa dinâmica de subordinação e reverência ao externo pode ser analisada à luz da psicologia das massas, conceito que descreve como a psicologia coletiva de um povo ou grupo pode ser manipulada, influenciada e até distorcida, levando à adoção de comportamentos e crenças que não são necessariamente os mais racionais ou vantajosos para o próprio grupo. A adesão cega a padrões externos e a valorização do que vem de fora em detrimento do que é nacional pode ser entendida como um reflexo dessa psicologia, que cria um consenso coletivo em torno da ideia de que o externo é superior ao interno.
Um exemplo emblemático dessa situação é o de Vinícius Júnior. Nascido em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, e criado em uma favela, Vinícius começou sua trajetória no Flamengo e, após conquistas expressivas, se destacou no futebol europeu, tornando-se uma das maiores estrelas do Real Madrid. No entanto, apesar de ter sido nomeado Melhor Jogador do Mundo pela FIFA, o jogador brasileiro enfrenta ataques constantes, tanto de figuras públicas quanto da mídia espanhola.
Mesmo diante de seu sucesso indiscutível, muitos tentam desmerecer suas conquistas, acusando-o de “vitimismo” e ignorando os imensos desafios que ele enfrentou para chegar até lá. O incômodo de ver um jovem negro, vindo de uma comunidade pobre, alcançar tanto êxito revela um complexo de vira-latas cada vez mais profundo, que permeia a sociedade brasileira e se fortalece na medida em que o país tenta se afastar de sua própria identidade.
Essa reação hostil ao sucesso de um semelhante pode ser analisada à luz da psicologia das massas, onde a ascensão de um indivíduo é vista como uma ameaça ao status quo coletivo. Muitas vezes, a raiva ou a rejeição ao sucesso do outro é uma resposta instintiva do grupo, que não quer admitir que o sucesso de alguém dentro do mesmo contexto social seja possível ou legítimo.
Situação semelhante ocorre com a atriz Fernanda Torres, que, ao ganhar o Globo de Ouro de Melhor Atriz Dramática por sua atuação em “Ainda Estou Aqui”, não apenas colocou o cinema brasileiro no mapa mundial, mas também se fez um símbolo do talento nacional. No entanto, em vez de aplaudirmos sua conquista, muitos preferem criticar, acusando-a de “viver de Lei Rouanet” e alegando que o prêmio foi fruto de “lacração”, como se ela tivesse subido ao palco com um cartaz escrito “prêmio fácil”. E, claro, o filme não recebeu recursos da Lei Rouanet – quem se importa com detalhes quando o objetivo é desacreditar? O mais impressionante é o fato de que, em vez de estarmos todos batendo palmas por ter uma brasileira brilhando no cenário internacional, muitos preferem despejar seu ódio gratuito sobre a vitória alheia, sem saber exatamente o porquê.
Como um bom “patriota”, esses mesmos indivíduos não podem ver uma pessoa do Brasil ser bem-sucedida sem pensar: “Ah, eu odeio fulano, e se alguém pergunta o porquê, a resposta é simples: eu não sei, só sei que odeio. Alguém me disse que eu devo odiar, então eu sigo o roteiro que me mandaram no WhatsApp.” E o melhor de tudo? São as mesmas pessoas que, de forma quase poética, se curvam diante de ícones estrangeiros, enquanto parecem achar um fardo o sucesso de alguém do seu próprio país. Eles adoram reverenciar o que vem de fora, como se o Brasil fosse apenas um palco para que os outros brilhassem. Ao invés de reconhecer o que é nosso, preferem dar as costas e fingir que o brilho dos nossos não vale a pena. Como se nossa própria terra fosse apenas um peso, enquanto o sucesso de outros – de longe – fosse o único digno de ser celebrado.
Essa constante rejeição ao talento nacional, que contrasta com a exaltação de produções estrangeiras, revela uma crise de identidade e autoestima que ainda assola o Brasil, onde o que é genuinamente nacional é constantemente questionado e minimizado. A psicologia das massas nos ajuda a entender como o grupo, muitas vezes, prefere manter suas crenças coletivas de superioridade do que admitir a qualidade do que é produzido localmente.
No campo empresarial, figuras como Elon Musk, dono da plataforma X (antigo Twitter), e Mark Zuckerberg, da Meta, são idolatradas por muitos brasileiros, apesar de ambos desrespeitarem as leis nacionais e promoverem desinformação. Musk, por exemplo, é visto como um visionário, embora sua história seja cercada de mitos, especialmente a falsa narrativa de um “começo do zero”.
Essa adoração cega pelo estrangeiro contribui para a propagação de fake news, aprofundando o desprezo pelo que é genuinamente brasileiro e reforçando a disparidade entre o que é local e o que é internacional. Musk e Zuckerberg são figuras que, apesar de suas falhas evidentes e atitudes questionáveis, são vistos como modelos a serem seguidos por uma parcela significativa da população brasileira, que prefere as narrativas e os exemplos externos a valorizar seus próprios ícones locais.
Ainda no futebol, John Textor, dono do Botafogo, fez acusações infundadas sobre manipulação de resultados e tentou burlar regras na França, onde atualmente enfrenta sanções. Mesmo assim, muitos brasileiros continuam a vê-lo como um salvador, ignorando as falhas e os problemas que envolvem suas ações. Essa tendência de tratar o estrangeiro com reverência, enquanto se é severo com os nacionais, reforça a ideia de que o que vem de fora é automaticamente superior, enquanto as conquistas locais não têm o mesmo valor.
Essa distorção do patriotismo também se reflete no comportamento de brasileiros que ostentam bandeiras de outros países, idolatram figuras estrangeiras e desvalorizam suas próprias conquistas. A seletividade na defesa de “bons costumes”, que se aplica somente a questões visíveis e convenientes, evidencia uma hipocrisia que alimenta o complexo de vira-latas, que, longe de desaparecer, avança sem controle, ganhando cada vez mais força na sociedade.
Hélio Figueira 17/01/25 - 12:45
Parabéns pela excelente análise, que aborda com conhecimento e segurança o que se passa neste nosso Bra(z)il.
Riana Moutinho 17/01/25 - 12:53
Que leitura maravilhosa!!!
Marcos Alencar 17/01/25 - 18:26
Quanto mais moralista é o cidadão, mais otário ele é.
Lara Cristina 17/01/25 - 18:31
Ainda teria como salvar nossos jovens, adolescentes e crianças dessa geração miserável de adultos burros e infantilizados? Sem generalizar, mas há quem considere um especialista um deputado que nem faculdade tem e vive de fake news.
Jackson Fagundes 17/01/25 - 22:11
Tem uma galera, principalmente nas redes sociais, que sente orgulho de demonstrar o quanto são burros