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A Educação Integral desponta, há décadas, como uma bandeira promissora no cenário educacional brasileiro. A ideia é sedutora: uma escola que não se limita à transmissão de conteúdos curriculares, mas que também se dedica ao desenvolvimento pleno do estudante em suas dimensões intelectual, física, social, emocional e cultural. É o reconhecimento de que o ser humano é complexo e que a escola, para ser verdadeiramente formadora, precisa abraçar essa complexidade. No entanto, entre o ideal e a realidade, ergue-se um abismo de precariedade estrutural que dificulta a efetivação dessa promessa.
Teoricamente, a concepção de Educação Integral encontra respaldo em diversos pensadores e correntes pedagógicas. Anísio Teixeira, um dos grandes defensores da escola pública no Brasil, já apontava para a necessidade de uma educação que preparasse o indivíduo para a vida em sua totalidade. Mais recentemente, autores como Edgar Morin, com seu conceito de “pensamento complexo”, e John Dewey, com a valorização da experiência e da aprendizagem ativa, reforçam a tese de que a educação deve ir além do mero acúmulo de informações, promovendo a capacidade de aprender a aprender e de se relacionar com o mundo de forma crítica e construtiva. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), ainda que alvo de críticas, também incorpora, em suas competências gerais, a busca por um desenvolvimento integral dos estudantes.
A promessa do novo PNE
A recente discussão na Câmara dos Deputados sobre a implementação da Educação Integral em tempo integral revela, mais uma vez, o abismo entre o discurso oficial e a realidade das escolas públicas brasileiras. O novo Plano Nacional de Educação (PNE) estabelece como meta 6 atender, preferencialmente em turno único, 55% das escolas públicas, alcançando ao menos 40% dos estudantes da Educação Básica. Uma meta ambiciosa, sem dúvida. Mas será que o país está preparado para torná-la realidade com qualidade e equidade?
Os debates realizados em audiência pública no dia 22 de maio apontam para um cenário desafiador. Questões como equidade, intersetorialidade, preservação da autonomia escolar, alimentação e integração entre turnos foram levantadas com a urgência que merecem. No entanto, pouco se falou sobre a precariedade das estruturas físicas, a falta crônica de professores e profissionais de apoio, e o subfinanciamento que compromete desde a merenda até os materiais pedagógicos.
As ausências do debate público
A audiência pública, ao destacar temas cruciais como equidade, integração entre turnos, alimentação escolar e autonomia das escolas, tocou em pontos sensíveis da agenda educacional brasileira. É fundamental que a discussão pública se debruce sobre como garantir que todos os alunos tenham acesso a uma educação de qualidade, como otimizar o tempo escolar para um aprendizado mais significativo, como assegurar uma alimentação nutritiva e como empoderar as comunidades escolares. No entanto, a análise atenta do debate revela uma lacuna preocupante: a ausência de discussões substanciais sobre as raízes dos problemas que impedem o avanço nessas mesmas áreas.
A questão central, que teima em ser tangenciada, é o subfinanciamento crônico da educação pública. Não se pode falar em equidade se escolas em diferentes regiões do país operam com orçamentos desiguais e insuficientes. Como garantir uma integração de turnos que funcione, com atividades diversificadas e enriquecedoras, se não há verba para contratar pessoal qualificado ou para manter a infraestrutura necessária? A alimentação escolar, por mais bem-intencionada que seja, enfrenta os limites de orçamentos apertados que muitas vezes comprometem a qualidade e a variedade dos alimentos oferecidos. E a autonomia das escolas, embora desejável, torna-se uma mera formalidade quando falta o mínimo de recursos para que as decisões pedagógicas e administrativas possam ser implementadas.
O risco da maquiagem pedagógica
A escassez de profissionais é outro elefante na sala que o debate público insiste em ignorar. Não há como alcançar uma educação integral e de qualidade se faltam professores em diversas disciplinas, se não há psicólogos escolares para lidar com questões de saúde mental, se as equipes de apoio são insuficientes para as demandas de uma escola cada vez mais complexa. A sobrecarga de trabalho dos educadores é uma consequência direta dessa escassez e da falta de valorização da carreira. Professores e demais funcionários se desdobram para dar conta de múltiplas tarefas, muitas vezes acumulando funções que deveriam ser exercidas por outros profissionais. Esse cenário não apenas prejudica a qualidade do ensino-aprendizagem, mas também afeta a saúde física e mental dos educadores, levando à desmotivação e ao adoecimento.
Educação Integral não é apenas estender o tempo de permanência dos alunos na escola. É garantir um currículo conectado à vida, aos territórios e às diversidades culturais do país. No entanto, sem formação continuada para os docentes, sem infraestrutura adequada e sem escuta ativa das comunidades, corremos o risco de transformar a proposta em mais uma maquiagem pedagógica para cumprir metas numéricas.
A necessária ruptura com o discurso vazio
Como bem destacou Raiana Ribeiro, da Cidade Escola Aprendiz, a Educação Integral deve ser entendida como um direito e não como benefício de poucos. Para isso, é preciso romper com a lógica do discurso vazio e implementar políticas públicas que descentralizem recursos, valorizem os profissionais da educação e fortaleçam a gestão democrática das escolas.
Esse rompimento com o discurso não se trata apenas de retórica, mas de uma ação concreta que garanta o acesso equitativo a uma educação de qualidade para todos. É fundamental que a sociedade civil se mobilize e cobre dos gestores públicos a efetivação dessas políticas, assegurando que o conceito de Educação Integral se traduza em práticas pedagógicas inovadoras e em um ambiente escolar que promova o desenvolvimento pleno de cada estudante.
Qual o tempo do nosso tempo integral?
Se a Educação Integral pretende formar sujeitos plenos, críticos e conscientes, é preciso perguntar: qual é o tempo do nosso tempo integral? É o tempo burocrático das metas e planilhas, ou o tempo vivido por estudantes que enfrentam fome, insegurança, exclusão e invisibilidade nas salas de aula?
Não basta discutir ampliação de jornada sem ampliar o sentido da escola como espaço de pertencimento, criação e transformação. O desafio não está apenas em estender as horas, mas em preencher esse tempo com dignidade, cuidado e justiça social.
Portanto, a Educação Integral só será de fato integral quando deixar de ser exceção e passar a ser expressão concreta de um projeto de país que se compromete com todos e não apenas com alguns. Até lá, seguimos denunciando, cobrando e, acima de tudo, sonhando com o impossível que insiste em nascer nas margens.
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