Siga nossas redes

Colunista

Marcos Souza

Um conselho de Shakespeare, só o filé

Refletir o “Ser ou não ser, eis a questão” ao som de Mc Pedrinho

Um conselho de Shakespeare, só o filé

Foto: Reprodução/ Canva IA

Um dia calorento desses, uns três anos atrás ou mais, apreciando cautelosa e contentemente cada linha da obra Hamlet (1623), de William Shakespeare, me deparei com a seguinte carta de amor escrita pelo personagem que dá nome à peça para sua amada, Ofélia:

Duvide do fogo das estrelas, duvide do sol em seu andor, duvide da mentira verdadeira, mas não duvide do meu amor.

Contraí os olhos e reli os versos até reencontrar em minha memória os vestígios de uma lembrança quase perdida. Desnorteado e descrente, espantado com o suposto acaso, gaguejei: Isso é Mc Pedrinho. Evidente que só poderia ser uma coincidência tosca, pensei. Com alguns poucos cliques, achei a referida música, chamada Nosso Amor, lançada em 2016, que se assemelha no trecho:

Duvide da luz dos astros, que o Sol tenha calor, duvida até da verdade, mas confia em mim, amor.

Shakespeare em Mc Pedrinho! Coincidência? Pouco provável. Arte? Definitivamente. Poético? Sim, e sem dúvidas. Mas um funkeiro, com seu gênero musical sendo muitas vezes reduzido pelos sábios ao esgoto, citando um clássico tão negado à periferia? É inadmissível!

Para além disso, não que venha ao caso, o irrelevante motivo d’eu reconhecer de bate-pronto a letra do Mc Pedrinho nos versos do dramaturgo inglês foi fruto de uma desilusão amorosa no ensino fundamental, quando a rejeição parece ser o fim de toda vida amorosa futura. Contudo, vá lá, o próprio Hamlet consola:

Me mostra o homem que não é escravo da paixão e eu o conservarei no mais fundo do peito.

Dos lançamentos das duas obras-primas, de 1623 a 2016, quase quatrocentos anos de diferença, a influência de Shakespeare na produção cultural brasileira e mundial continua sendo pujante, uma vez que já se eternizou como clássico; por outro lado, é bastante discutível balizar a figura de Mc Pedrinho na cultura global, pois, além de poder vir a lançar sua grande obra da vida, somente o passar das décadas definirá seu verdadeiro impacto.

— Sim, mano, mas qual é o conselho só o filé, mesmo?

Ah, claro! Perdão pela minha digressão, buscarei ser mais objetivo. O conselho, conselhos, na verdade, porque são vários, serão ditos logo mais. Antes, cabe ressaltar que o livro abordado, Hamlet, é disponibilizado gratuitamente em sua versão digital para todas as pessoas interessadas.

Dito isto, resta a nós, entusiastas e amantes da literatura, regurgitar e gritar aos quatro pontos cardeais a maravilhada leitura e em quais sentidos ela pode clarear a bruma embaraçosa porvir. O esplendoroso trecho em específico a qual pertence os conselhos a serem deliciados, trata-se de uma cena em que, Polônio, um lorde camarista, pai de Laertes e Ofélia, despede-se de seu filho, Laertes, deixando, emocionado e pesaroso, os seguintes conselhos, que, por sinal, são os últimos que o filho ouvirá da boca de seu pai. Aí está, também, como um adendo amigável e atemporal para este ano e os que virão pela frente:

POLÔNIO: (Põe a mão na cabeça de Laertes.)

 

E trata de guardar estes poucos preceitos:

Não dá voz ao que pensares, nem transforma em ação um pensamento tolo.

Sejas amistoso, sim, jamais vulgar.

Os amigos que tenhas, já postos à prova,

Prende-os na tua alma com grampos de aço;

Mas não caleja a mão festejando qualquer galinho implume

Mal saído do ovo. Procura não entrar em nenhuma briga;

Mas, entrando, encurrala o medo no inimigo,

Presta ouvido a muitos, tua voz a poucos.

Acolhe a opinião de todos – mas você decide.

Usa roupas tão caras quanto tua bolsa permitir,

Mas nada de extravagâncias – ricas, mas não pomposas.

O hábito revela o homem,

E, na França, as pessoas de poder ou posição

Se mostram distintas e generosas pelas roupas que vestem.

Não empreste nem peça emprestado:

Quem empresta perde o amigo e o dinheiro;

Quem pede emprestado já perdeu o controle de sua economia.

E, sobretudo, isto: sê fiel a ti mesmo.

Jamais serás falso pra ninguém

Adeus. Que minha bênção faça estes conselhos frutificarem em ti.

Sintam-se abraçados pelas palavras afogueadas e penetrantes de um dos maiores artistas de nossa espécie. E se vier o questionamento de que, na real, o monólogo de um personagem fictício para com seu filho também fictício é vago demais para os seus problemas atuais, não custa nada lembrar que, no passado não tão distante, seríamos considerados um povo ficcional, futurista, exagerado, doente, problemático, bizarro em sua história recente e deprimente em suas falhas soluções.

Uma obra digna de ser popular, de compreensão deslumbrante, reviravoltas máximas, de musicalidade em suas encharcadas batidas, saborosa leitura e de valiosos ensinamentos, cuja necessidade é somente de tempo, de tempo cedido pela pessoa leitora.

Leia mais:

1 Comentário

1 Comentário

  1. Riana Moutinho 17/01/25 - 12:45

    Que leitura saborosa!!!! Quero mais…

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

quinze − 12 =

Mais em Marcos Souza