
Teatro Amazonas. Foto: Reprodução/ pexels
Antes de o Teatro Amazonas abrir seu coração para a entrada dos espectadores à espera da peça Simples Assim, sob o tempo ameno de um sábado à noite, tornava-se inevitável observar o recorte social e econômico do público presente. Uma outra Manaus. Aos poucos a fila foi aumentando, os carrões estacionavam e deles saíam pessoas nas quais se identificavam as origens pelas vestimentas, poses e olhares. Uma crítica clichê, tudo bem, mas não sem razão. A fila ia se estendendo, se expandindo, e a bruma esnobe de uma classe que almeja a burguesia, mas que acerta no elitismo mais idiotizado, fez-se sentir.
Implicância, com certeza. Era necessário deixar essa implicância de lado, até porque, olhem só, ali vinha para fila um grupo de pessoas que, finalmente, representava o povo manauara, seja pela miscigenação no tom de pele, pelos diálogos e pelas vestimentas comuns, seja pelo calor enérgico daqueles que pegam sol nas cabeças. O grupo vinha de um rumo só, unidos, mais de vinte pessoas, após um momento de fotos na frente do Teatro; mas eis que ouço, em alto e bom-tom: “aí vem o pessoal que veio de ônibus”, seguido de uma risada entre calhordas, entre falante e ouvinte.
Implicância, talvez. Um tanto quanto curioso, aliás, observar que o comentário, por mais “sem querer” que fosse, retrata um cenário de discrepância entre as (re) produções e incentivos culturais e quem está usufruindo dessas benesses. Era um evento de turnê nacional, sim, embora se engane quem supõe serem os ingressos caros demais, uma vez que para a peça em questão havia ingressos a partir de vinte reais. Então, ora, os preços a princípio são acessíveis, há espetáculos praticamente toda semana, alguns com incentivos públicos, acontecendo, também, aos finais de semana, no entanto, ainda assim, temos um recorte que de modo algum representa as camadas populares da nossa cidade.
Podemos, evidentemente, atrelar o cenário a diversas variáveis, desde o fator econômico até mesmo a espacialização geográfica, juntamente aos problemas de locomoção. Manaus tem mais da metade da população vivendo em favelas (ou comunidades, para agradar aos pseudo intelectuais). Como um povo vivendo em condições precárias e com instabilidade financeira terá cabeça para ir ao Teatro Amazonas em uma noite amena de sábado? É loucura imaginar um pai, que nunca foi levado ao teatro quando criança, levar os seus filhos espontaneamente a esse mesmo teatro? E se ele, morando numa favela, insatisfeito com seu parco salário, mas mesmo assim preocupado com a educação dos filhos, decidir levar os seus filhos ao teatro, certamente os levará de… Ônibus? Bem pode ter sido esta a reflexão da calhorda ao proferir sua calhordice.
Enfim, a discussão sobre o papel do teatro e o seu enfraquecimento popular é analisada em proporções dantescas por todo o país, sendo recorrente o debate crítico nos núcleos desse gênero literário. Haverá os que ressaltam a intensa presença do teatro como arte popular no decorrer da História, os que apresentam as causas e as consequências, haverá também os que lutam ativamente por uma mudança e os que, frequentando esses espaços, torcem para o ônibus sucateado pregar o mais longe possível do coração do Teatro Amazonas, mantendo dessa maneira a elegância dos delírios aristocráticos.
A indagação que fica é se algum dia as artes cênicas tomarão seu justo protagonismo, apesar de que sua principal deficiência é externa a ela, porque a cidade cresceu; o povo ocupou as margens, não as do rio Amazonas, mas as da própria cidade, afastado pela selvageria imobiliária e a falta de planejamento urbano; a desigualdade social se extremou; a inflação roeu nossas moedas; a cultura virou utensilio de status social; a dramaturgia se corrompeu; o mundo digital nos isola do convívio social; os trabalhadores estão cansados, escolheram o sábado para descansar, se não estiverem trabalhando; e seus filhos, escultores do nosso futuro, estão preparados para serem a sua imagem e semelhança.
Quanto à apresentação de Simples Assim, peça baseada na obra homônima da escritora Martha Medeiros, e encenada por Pedroca Monteiro, Julia Lemmertz e Georgiana Góes, foi magnífica, cativante e bastante divertida, um afago artístico, contemporâneo e atualíssimo, simplesmente assim. O público é que foi (quase) o mesmo.
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