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Colunista

Ailane Brito

Desenvolvimento ou devastação? O petróleo que ameaça a costa amazônica

Prometem progresso, mas enterram vidas: a lama do petróleo afoga a Amazônia sob o silêncio dos discursos oficiais

Desenvolvimento ou devastação? O petróleo que ameaça a costa amazônica

Imagem criada com o auxílio de IA

Eu estava lendo Catedral Submersa quando soube que, mesmo sob protestos e pareceres técnicos, o governo insistia em abrir as portas da Foz do Amazonas ao leilão. E foi impossível não traçar um paralelo entre as histórias submersas no livro e os interesses que ameaçam afogar a costa amazônica em óleo cru e silêncio institucional.

No livro de Anderson Costa, a lama vem de cima, sem aviso — embora os alertas sempre tenham existido. Assim também a exploração de petróleo: vestida de promessa, mas trazida com a mesma velha roupagem colonial, disfarçada de desenvolvimento.

Esse recente leilão de 19 blocos de petróleo na Bacia da Foz do Amazonas, realizado pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) no último dia 17, é mais do que um simples evento do setor energético — é um triste marco do retrocesso ambiental, estratégico e democrático. A decisão de ofertar essa região sensível sob regime de concessão escancara a ausência de um projeto de nação que considere o desenvolvimento sustentável como prioridade. Pior: ignora o clamor de cientistas, ambientalistas e da própria sociedade civil organizada.

Quem lucra com o petróleo? Quem paga a conta? A resposta tá na lama.

É aquela velha lógica que o Brasil insiste em não superar: a entrega de recursos estratégicos ao capital estrangeiro, sob a promessa de desenvolvimento, mas com alto custo ambiental, social e geopolítico. Em vez de debater com profundidade e sob princípios de soberania, o governo optou por um modelo de concessão que privilegia empresas privadas — muitas delas multinacionais — em detrimento de um regime de partilha que manteria o controle nacional sobre a exploração.

Submersos estamos nós: o país que vende o que não entende

Na leitura de Catedral Submersa, de Anderson Costa, mergulhei num Brasil onde a lama não vem só da terra — vem da negligência. A história se passa em Manaus, mas poderia ser em qualquer margem do país onde as águas transbordam, onde o progresso chega tarde demais ou na forma errada.

E cada vez que lia, não conseguia deixar de pensar no leilão da Foz do Amazonas, esse gesto técnico e político que parece ignorar as camadas humanas, culturais e ambientais que existem entre o asfalto e o fundo do mar. A mesma estrutura que construiu o mundo de Joycemara — baseado na promessa da Zona Franca, no êxodo forçado de gente do interior, no apagamento das raízes indígenas — se repete agora no discurso de que o petróleo é oportunidade. Oportunidade para quem?

“Chegavam sem nada, seduzidos com a promessa de trabalho na Zona Franca que vivia o seu auge.”

Assim como a Zona Franca trouxe uma industrialização que não transformou de fato a vida dos mais pobres, o petróleo da Foz vem envolto nas mesmas armadilhas: cifras anunciadas de longe, estudos ambientais contestados, consulta prévia ignorada. Os povos que habitam o litoral amazônico hoje — ribeirinhos, pescadores, quilombolas, indígenas — são os Joycemaras do presente: vivem nos arredores do poder, mas nunca são convidados a decidir.

No livro, a lama é literal. O igarapé transborda, as crianças brincam descalças, os adultos improvisam caminhos com tábuas. Mas é também simbólica: uma massa que cobre a história, que apaga rastros, que entope futuros. E o petróleo da Foz promete fazer o mesmo. Virá como um derramamento moderno — não de barro, mas de silêncio oficial e risco permanente.

“Doía não saber como fora parar naquele universo.”

Se a personagem de Anderson Costa sofre por não saber de onde veio, que futuro podemos construir quando o próprio país parece não saber para onde vai? Que identidade nacional é essa que escolhe apagar seus povos e perfurar sua costa sem ouvir ninguém?

Leiloar a Foz é mais que retrocesso: é desrespeito às vozes que vivem ali.

A Amazônia tem sido tratada como borda, quando na verdade é coração. Seus rios, seus mares, seus povos não são obstáculos ao progresso — são territórios de vida. Quando ignoramos isso, construímos uma nação de catedrais submersas: estruturas soterradas de memória, fé e pertencimento.

A Amazônia como commodity

A condução desse leilão escancara a lógica que ainda impera no país: a Amazônia continua sendo vista como um reservatório de recursos a serem explorados a qualquer custo, como uma commodity a serviço de interesses privados. Essa visão extrativista, anacrônica e predatória contrasta frontalmente com o discurso que o país pretende sustentar em fóruns internacionais, como a COP 30, que será realizada em Belém.

Não é coerente anunciar compromissos climáticos enquanto se leiloa um dos ecossistemas mais sensíveis do planeta a portas fechadas, sem transparência nem participação social. Não é admissível continuar explorando riquezas naturais como se vivêssemos em um passado colonial, no qual o lucro de poucos vale mais que a vida de muitos.

No fundo, o que está por trás do leilão da Foz do Amazonas é um Estado que falha com seu povo e flerta perigosamente com a irreversibilidade ambiental. É a priorização do lucro de poucos sobre a vida de muitos. O que está por trás do leilão da Foz do Amazonas é um modelo de desenvolvimento ultrapassado, que coloca os interesses do capital internacional acima da soberania nacional, da justiça ambiental e do direito das populações amazônidas de decidir sobre seus territórios. É a repetição de um roteiro colonial, no qual riquezas são extraídas e exportadas enquanto ficam aqui os impactos sociais, ecológicos e climáticos.

Esse modelo de desenvolvimento que insiste em perfurar o fundo do rio e o fundo da alma brasileira é o mesmo que, em Catedral Submersa, empilha santos, Exus e mártires num altar improvisado, esperando que alguma entidade venha dar sentido ao caos. É a mesma lógica que desloca populações, esconde histórias, e depois chama isso de progresso.

Sob o discurso desse falso progresso, o Estado brasileiro promove o desmonte silencioso de seu patrimônio estratégico, tratando a Amazônia como um estoque de recursos e não como um bioma vivo, essencial à sobrevivência do planeta. A ausência de debate público, a escolha pelo regime de concessão e a pressa em leiloar sem licenciamento ambiental reforçam o caráter entreguista dessa operação.

O que chamam de progresso, a Amazônia sente como ferida

O livro não fala de petróleo, mas fala de tudo o que o petróleo toca: deslocamento forçado, apagamento cultural, adaptação forçada à lógica de um Estado que só chega quando quer explorar. Joycemara, mesmo sem saber quem é, precisa trabalhar para esse Estado. É assistente social. Serve ao sistema que a esqueceu — e isso diz muito. Assim como tantos agentes públicos na Amazônia que têm que intermediar políticas que não foram feitas para os seus.

A Amazônia está cheia de catedrais submersas — não de pedra, mas de histórias interrompidas, de pertencimentos rasgados, de futuros adiados. O que está em jogo com o leilão da Foz do Amazonas não é só uma área do oceano, mas a decisão de repetir ou romper com o ciclo de exploração sem retorno.

Portanto, o que se revela nesse leilão não é apenas petróleo no subsolo, mas a fragilidade de uma política energética subordinada ao mercado, distante do povo e surda aos alertas da ciência. E sabe-se que o lucro é estrangeiro, mas o preço será pago por todos nós.

Ler Catedral Submersa para mim é um ato de resistência. Porque cada linha nos lembra que há gente viva por trás do que chamam de “área explorável”. Que há histórias não contadas atrás de cada dado técnico. E que não é possível perfurar a Foz do Amazonas sem, junto dela, perfurar também o pacto de dignidade com quem habita suas margens.

O verdadeiro progresso exige coragem política, planejamento estratégico e, sobretudo, respeito à vida. Defender a Amazônia — e a Foz do Amazonas, em especial — mais do que uma causa ambiental: é uma exigência ética diante da crise climática que nos cerca.

E então, resta a pergunta: vamos continuar soterrando as catedrais da nossa história, agora debaixo do mar?

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