Siga nossas redes

Cultura

Quando uma lagarta ensina mais que muita gente: o ritual Sateré-Mawé e a urgência de olhar para a Amazônia

Que nós, leitores, possamos, finalmente, entender que não há futuro possível sem Amazônia, sem floresta, sem povos originários e sem a sabedoria que eles carregam há milênios

Quando uma lagarta ensina mais que muita gente: o ritual Sateré-Mawé e a urgência de olhar para a Amazônia

Foto: Arquivo pessoal

(*) Crônica sobre o livro Vem brincar de onça e de cutia! Um ritual Sateré-Mawé em uma aventura amazônica surpreendente”, dos autores Gláucia Benchimol e Renan Albuquerque

 

Num mundo cada vez mais acelerado, barulhento e desconectado da própria essência, poucos ainda param para refletir sobre o valor dos saberes que vêm da terra, da floresta e das culturas que há milênios habitam e protegem os biomas que sustentam a vida no planeta. Em meio a esse cenário, surge uma obra literária que, sob uma roupagem lúdica e encantadora, entregando uma poderosa mensagem sobre transformação, coletividade e respeito. O livro “Vem brincar de onça e de cutia! Um ritual Sateré-Mawé em uma aventura amazônica surpreendente”, dos autores Gláucia Benchimol e Renan Albuquerque, publicado pela Editora Valer e vencedor do prêmio Frauta de Barro 2023, não é apenas uma aventura infantojuvenil. É uma ponte entre mundos, uma ferramenta de educação, resistência e sensibilização.

A história tem como protagonista Carmelita, uma lagarta-de-fogo cientista e fotógrafa que vive em Manaus. Curiosa, determinada e cheia de vontade de se transformar — no sentido mais literal e simbólico da palavra —, Carmelita embarca numa jornada desafiadora e poética em busca de um ritual de transformação dos Sateré-Mawé. Seu objetivo é se tornar borboleta, mas descobre, ao longo do caminho, que essa metamorfose exige mais do que coragem: requer escuta, respeito, convivência, humildade e, principalmente, o entendimento do valor do coletivo sobre o individual.

Sua trajetória começa quando, de forma quase cômica e profundamente simbólica, ela é literalmente arremessada para fora da biblioteca. Esse detalhe não é mero acaso narrativo. É uma provocação inteligente dos autores, que nos faz refletir sobre os limites da aprendizagem baseada exclusivamente nos livros, na teoria ocidental e na visão de mundo que desconsidera os saberes ancestrais, os ensinamentos da oralidade e a vivência comunitária.

Expulsa do espaço que representa o saber acadêmico, Carmelita parte em uma viagem pelos rios amazônicos, enfrentando desafios, medos e incertezas. Ela divide o percurso com uma formiga Tucandeira, outra personagem carregada de simbolismo, que remete ao próprio ritual de iniciação dos jovens Sateré-Mawé — aquele que envolve luvas de palha cheias de formigas Tucandeiras, testando a resistência, a força e a coragem dos iniciados. Nada nesse livro está por acaso. Tudo carrega múltiplos sentidos, múltiplas camadas de interpretação.

Ao chegar ao rio Hamza, um dos maiores rios subterrâneos do mundo, Carmelita se depara com o ritual da onça e da cutia, uma tradição que une crianças e adultos da etnia Sateré-Mawé em um jogo que não é apenas brincadeira, mas sim um poderoso instrumento de ensino, de transmissão de valores e de fortalecimento da cultura. Nesse ritual, os papéis de caçador e presa são encenados de forma lúdica, permitindo que as crianças entendam, desde cedo, conceitos fundamentais como interdependência, equilíbrio ecológico, respeito aos ciclos da natureza e o papel de cada ser dentro da coletividade.

A escolha desse ritual como eixo central da narrativa não é aleatória. Ela traz à tona discussões extremamente necessárias sobre como a educação ocidental, colonizada e eurocêntrica, muitas vezes ignora — ou até despreza — os saberes originários. A própria existência de um ritual que ensina sobre o equilíbrio entre caçador e presa, sobre os limites do poder e a necessidade de respeito mútuo, é uma lição que falta, e muito, nas nossas escolas, universidades e, principalmente, na formação ética da nossa sociedade.

Enquanto Carmelita aprende, se conecta e participa desse universo, o leitor, inevitavelmente, é convidado a refletir sobre sua própria relação com o meio ambiente, com os povos indígenas e com os processos de transformação pessoal. Afinal, quantos de nós, no nosso cotidiano, estamos realmente dispostos a sair da nossa bolha, abandonar certezas e abrir espaço para aprender com quem pensa, vive e enxerga o mundo de uma forma diferente da nossa?

O livro toca, de forma sensível e profunda, numa ferida que nossa sociedade insiste em ignorar: a negação sistemática dos saberes tradicionais. Durante séculos, os povos originários foram — e continuam sendo — deslegitimados, silenciados e, muitas vezes, tratados como obstáculos ao chamado “progresso”. Uma visão que, além de cruel e injusta, é profundamente burra, no sentido mais literal da palavra. Afinal, são esses povos que, até hoje, garantem a preservação de vastas áreas da Amazônia e de outros biomas, enquanto o restante do mundo segue destruindo ecossistemas em nome de uma falsa ideia de desenvolvimento.

A jornada de Carmelita é, portanto, muito mais do que uma aventura de autoconhecimento. Ela simboliza a própria necessidade urgente de transformação social. Representa a urgência de uma sociedade que precisa, desesperadamente, reaprender a viver em equilíbrio com a natureza, a valorizar a coletividade, a compreender que não existe futuro possível num mundo em que se prioriza o lucro, o consumo e a exploração desenfreada dos recursos naturais em detrimento da vida.

É impossível ignorar, também, o papel dos autores nesta construção. Gláucia Benchimol, psicóloga, artista e autora, traz uma sensibilidade que transborda em cada linha, criando personagens cativantes e situações que equilibram, com maestria, fantasia e realidade. Renan Albuquerque, professor da Universidade Federal do Amazonas e pesquisador dos Sateré-Mawé há mais de uma década, garante à obra uma profundidade ética, histórica e antropológica que torna o livro muito mais do que uma obra de ficção. É, de fato, um documento vivo de resistência, de valorização cultural e de educação ambiental.

As ilustrações de Rodrigo Abrahim, por sua vez, não são meros complementos gráficos. Elas fazem parte da narrativa, ampliam significados, emocionam, encantam e oferecem ao leitor uma experiência estética que dialoga diretamente com o conteúdo do texto. É uma obra que comunica por palavras, por imagens e, principalmente, por sensações.

No desfecho da história, Carmelita não se torna simplesmente uma borboleta. Ela se transforma em um arco-íris-borboleta, uma criatura mítica, que carrega em suas asas todas as cores, todos os sons e todos os saberes que encontrou em sua jornada. Essa transformação não é apenas estética. Ela simboliza a integração de diferentes mundos, saberes e perspectivas. É a materialização de uma nova forma de ser no mundo — uma forma que abraça a diversidade, a coletividade, o respeito e a harmonia com a natureza.

E aqui cabe uma reflexão inevitável: estamos, enquanto sociedade, preparados para esse tipo de transformação? Ou seguimos presos, como lagartas que se recusam a sair do casulo, acreditando que não há nada além daquilo que já conhecemos, que já dominamos, que julgamos ser a única verdade possível?

O livro “Vem brincar de onça e de cutia” não entrega respostas prontas. Ele não faz promessas vazias, nem se coloca num pedestal de superioridade moral. Pelo contrário. Sua proposta é justamente provocar o desconforto necessário para que o leitor questione suas próprias certezas, repense seus próprios hábitos e, quem sabe, inicie também seu próprio ritual de transformação.

Seja você criança, jovem ou adulto, a mensagem é clara: há muito que aprender com os povos da floresta. Há muito que rever sobre a forma como nos relacionamos com o meio ambiente, com os outros e, principalmente, conosco mesmos. A transformação, assim como a de Carmelita, é possível. Mas ela exige coragem. Exige entrega. Exige a disposição de, antes de se tornar borboleta, atravessar o desconforto de não saber, de ouvir mais do que falar, de observar mais do que julgar.

Carmelita, a lagarta-de-fogo que virou arco-íris, pode seguir nos inspirando. Que os

Sateré-Mawé continuem resistindo, ensinando e mostrando ao mundo que há outras formas de existir — formas mais justas, mais coletivas, mais sustentáveis e, acima de tudo, mais humanas. E que nós, leitores, possamos, finalmente, entender que não há futuro possível sem Amazônia, sem floresta, sem povos originários e sem a sabedoria que eles carregam há milênios. Ainda há tempo. Mas não muito.

Leia mais:

Clique para comentar

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

catorze + catorze =

Mais em Cultura