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Colunista

Marcos Souza

Papéis Amarelos: um manifesto contra o esquecimento do caos pandêmico

A reivindicação da verdade, da memória e do direito de respirar através da escrita de Raissa Jambur

Papéis Amarelos: um manifesto contra o esquecimento do caos pandêmico

Escritora Raissa Jambur. Foto: Arquivo pessoal

Certa ocasião, olhando pela janela do escritório onde trabalhava e tragando seu septuagésimo-nono cigarro do dia, Fernando Pessoa pensou e tomou nota: “Só a Arte é útil. Crenças, exércitos, impérios, atitudes – tudo isso passa. Só a arte fica, por isso só a arte vê-se, porque dura”. E para além do número exorbitante de cigarros fumados por dia, o escritor português alumiou uma concepção digna de infindáveis reflexões, inquestionavelmente; mas, Pessoa, e quando a obra artística se alicerça em um acontecimento calamitoso da realidade, nós devemos desmembrá-la das inutilidades, retocar a realidade como ficção, ou, quem sabe, espreitar sem pressa a evolução inata daquilo que é arte, logo, duradouro e útil? Utilitarismo e Pessoa à parte, Papéis Amarelos, livro de contos de Raissa Jambur, além de necessário para reconhecer o sofrimento e combater os agressores, é esmerada arte, assim como também ousa mexer com crenças, exércitos, impérios, atitudes…

Em síntese, Papéis Amarelos tem como cenário de (re) criação literária a crise de oxigênio ocorrida em Manaus durante a pandemia de coronavírus. A escritora faz pequenos recortes dentro de um tecido virulento e caótico, enxertando com dolorosos alfinetes factuais a iminência da contaminação mortal e a tentativa extenuante de combater aquilo que não víamos.

Os contos permeiam agilmente os hospitais saturados pela contaminação em massa, os familiares agoniados, temerosos e esperançosos pela condição dos internados, os profissionais da saúde aperreados pela alta demanda de serviço e pela baixa oferta de recursos, as vítimas sôfregas pelo mínimo ar que pudessem inspirar, e um povo conturbado, dividido entre os revoltados pelo descaso e os preocupados exclusivamente em palitar os próprios dentes.

Volteando entre os trinta contos presentes na obra, esbarra-se sempre no ambiente hospitalar e na condição aflitiva que o vírus e a mediocridade política trouxeram. Os dois contos que levam o nome da obra (Papéis amarelos e Papéis amarelos II) são bastante representativos para os eixos narrativos contidos na obra. O primeiro interage com uma metáfora aos papéis amarelos, os papéis de óbitos, e sua função persecutória aos personagens; o segundo, mais recorrente nos enredos, manifesta o cansaço e o desespero de quem realmente sobreviveu e tentou lutar pela vida dos seus.

Por mais que a tensão fúnebre esteja a todo instante nos escritos, há momentos em que Raissa retoma aos personagens as suas vivências para além da pandemia, é o caso, por exemplo, de A coreografia, pelo anseio à dança, de Louvor, pela música, e de Alho frito, pelas reminiscências gastronômicas. Outros contos, aonde a experiência dos sentidos da autora conduz a uma descrição bastante detalhista e fidedigna da ocasião, inserem os leitores no desassossego pandêmico, ora na parte externa do hospital, como no conto A fila, ora na parte interna, como em Sala Rosa 2, mas também na dimensão digital, narrado em Nos grupos. E ainda que um silêncio agonizante se impregne na ansiedade de um desfecho ameno, alguns contos são explosivos desde o início, tal como em De quem é a culpa desta merda?, que se inicia assim: “ELES NÃO ESTÃO FAZENDO NADA! NADA! A GENTE TÁ AQUI, TRAZ BANQUINHO, ACAMPA NO HOSPITAL, E O OXIGÊNIO NÃO CHEGA! ELES FIZERAM ESTA FESTA DE DESGRAÇA ACONTECER, ELES!”.

As particularidades da obra são, sem dúvidas, passíveis de diversas abordagens e análises críticas, feitas seja por um acadêmico metódico, seja por um leitor ciente dos dissabores daquela época. É fato que a leitura de Papéis Amarelos e a releitura do período em questão torna a rasgar uma cicatriz remendada com um frouxo desamparo, amálgama de ódio, ressentimento, luto, indignação, esperança, decepção, incerteza, descrença, nojo, rancor… E outra série de definições que não cabem no limitado retângulo de uma coluna.

Cabe ressaltar, inclusive, que a própria autora resguarda um de seus contos, o último, para confrontar a corja assassina, ladra e inimiga do povo. Conto-protesto é um rompimento da realidade tornada ficção para proposição de um novo movimento, um movimento de recordações, tanto dos que se foram e dos que resistiram com suas sequelas, quanto da impune corja, desde muito fortalecida e firmada na política municipal, estadual e nacional com base nas mais mórbidas mentiras e no cínico sensacionalismo que tenta e consegue iludir parte considerável da população. Apesar das omissões, a dita corja precisa quanto antes cair perante seus próprios atos, pois ela ri da nossa impotência, dos nossos problemas e sufocos. Ela ri hoje, mas amanhã há de ser outro dia. E é bem como uma vez disse Millôr Fernandes: O Brasil tem um enorme passado pela frente. Recordemos da pandemia.

Papéis Amarelos está disponível no site da editora Urutau em sua versão física ou entrando em contato com a escritora em sua rede social (@raissajambur).

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