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Diálogos do Norte

Wanderly Andrade fala sobre educação, ancestralidade e resistência

Com base em sua vivência como educadora quilombola, Wanderly Andrade analisa os desafios do ensino em territórios tradicionais e defende a valorização dos saberes ancestrais

Wanderly Andrade fala sobre educação, ancestralidade e resistência

Foto: Arquivo pessoal

Filha de mãe com raízes quilombolas, Wanderly Andrade nasceu na zona rural de Óbidos e desde cedo construiu uma trajetória marcada pelo envolvimento comunitário e pela vivência da fé. Vive há 25 anos na Comunidade Quilombola Muratubinha, onde atua como professora e se tornou uma liderança respeitada. Desde 2006, educa enfrentando os desafios impostos pela geografia da Amazônia, o acesso limitado e a falta de estrutura, mas com firmeza e compromisso com os alunos e com a comunidade que representa.

Acredita no esperançar de Paulo Freire como ação concreta, não como espera passiva. Em sua prática docente, une saberes tradicionais, sustentabilidade e valorização do território. Para ela, educar vai além da sala de aula: é plantar árvores, ouvir os mais velhos, combater o preconceito e resistir diariamente com afeto e coragem. Nesta entrevista, compartilha sua trajetória, os desafios do ofício, a vivência em comunidade, sua visão crítica sobre o sistema educacional e os sonhos que alimentam sua atuação como educadora e cidadã quilombola.

Quem é Wanderly Andrade?

Eu nasci no meio rural no Município de Óbidos e tenho raiz quilombola por parte da minha mãe que é descendente da comunidade Igarapé Açu dos Lopes. Aos 7 anos de idade passei a morar no meio urbano e comecei minha vida escolar, sempre participei dos movimentos da igreja católica na comunidade onde residi. Passei a morar na comunidade Muratubinha há 25 anos e continuei desenvolvendo trabalhos comunitários. Em 2006, comecei a exercer a função de educadora. Sempre tive esse desejo e, quando surgiu essa oportunidade, aceitei mesmo sabendo que seria um grande desafio, principalmente pelo fato de residir mais de 3 km distante da escola — uma longa estrada percorrida quase todos os dias. Aos poucos, foram surgindo algumas melhorias, uma delas foi o transporte escolar que facilitou a vida de várias pessoas. Hoje continuo residindo no mesmo lugar, utilizo o rabeta como transporte e ainda enfrento alguns desafios, pois nem sempre o Rio Amazonas oferece condições para uma viagem tranquila. Isso faz parte da realidade de muitos povos tradicionais.

Como liderança quilombola, enfrentei vários desafios e adquiri muitas experiências. Participei de muitas conquistas, e essas experiências são fundamentais para desenvolver trabalhos na sala de aula sobre valorização e fortalecimento dos quilombolas.

O que representa para você ensinar em um território ancestral?

Educar em territórios ancestrais é desenvolver uma troca de saberes. Assim como os discentes levam conhecimentos da escola para o âmbito familiar, eles trazem e compartilham os saberes no espaço escolar. Um dos desafios é acompanhar os temas relevantes da atualidade sem negligenciar os costumes e tradições locais, pois as comunidades ancestrais possuem uma grande riqueza de saberes que nos encantam. Eu já aprendi bastante e desejo aprender muito mais. Os anciãos do nosso território são os verdadeiros professores formados nas universidades da vida, cheios de experiências para serem compartilhadas e registradas, para que as tradições não se percam.

Você se define como alguém que pratica o esperançar de Paulo Freire — que, mais do que esperar, significa agir com esperança, construir possibilidades e transformar realidades. De que forma esse pensamento orienta sua prática como professora?

Eu gosto de praticar o esperançar, coloco em prática meus conhecimentos porque acredito que não adianta adquirir conhecimento se não colocarmos em prática. Na teoria tudo é mais fácil, mas, se queremos formar cidadãos críticos, devemos dar exemplos com atitudes — como trabalhar sustentabilidade plantando mudas de árvores, fazendo a coleta seletiva do lixo e promovendo outras ações concretas.

Qual deve ser o papel da escola em contextos historicamente excluídos? Como ela pode fortalecer saberes, vínculos e sentido de pertencimento?

A escola deve ser um espaço acolhedor, onde tanto os alunos quanto os comunitários se sintam valorizados, pois a equidade deve fazer parte desse ambiente. Só assim podemos criar vínculos de pertencimento — tanto para lutar por direitos quanto para comemorar as conquistas alcançadas. Pertencimento não é só para exigir os direitos; pertencer é compartilhar momentos bons e ruins, pois é nas dificuldades que precisamos unir forças para não desistir.

Como você avalia o sistema educacional brasileiro hoje? Quais mudanças considera urgentes para que ele atenda melhor as comunidades negras, quilombolas e rurais?

Falar sobre o sistema educacional brasileiro é bastante complexo, visto que a desigualdade de acesso à educação varia em diferentes regiões. Vários fatores contribuem para que a desigualdade no acesso e na qualidade do ensino ainda seja um grande desafio a ser superado. Existem lugares aonde os recursos referentes à educação não chegam e, quando isso acontece, nem sempre são aplicados corretamente, dificultando assim o acesso à educação. O que poderia contribuir para amenizar essa desigualdade seria a formação de Conselho Escolar em todas as escolas, pois os recursos são destinados diretamente para as escolas e aplicados de acordo com as necessidades do espaço escolar. Por meio do conselho, podem ser acessados vários programas aderidos pelos municípios que são voltados para o desenvolvimento e aprendizado dos alunos. As associações quilombolas devem trabalhar em parceria para acessar políticas públicas que contemplem a escola.

Para além da sala de aula, como se dá sua atuação como liderança na comunidade? Pode compartilhar ações, projetos ou mobilizações em que esteja envolvida?

Na atualidade não faço parte das lideranças quilombolas do território, porém já participei de várias lutas e conquistas. Vale ressaltar que nos quilombos não trabalhamos sozinhos, e sim na coletividade. Uma das lutas que continua há vários anos é pela titulação do nosso território. Almejamos muito por essa conquista porque ela é muito importante para o quilombo.

Ensinar em um lugar onde pulsa a ancestralidade, mas faltam políticas públicas, exige resistência diária. Como você concilia afeto, luta e esperança nesse cotidiano?

Trabalhar em uma comunidade quilombola é muito gratificante. Existem as lutas, mas não são tão diferentes das demais comunidades, pois o objetivo maior é o aprendizado dos alunos — um desafio que enfrentamos no espaço escolar. Nas escolas quilombolas precisamos preparar nossos discentes para lutar e resistir todos os dias, principalmente contra o preconceito, o racismo e a discriminação. A força para lidar com as dificuldades eu encontro nos movimentos e grupos dos territórios.

Quais são os sonhos que você cultiva para a comunidade onde vive — e para a educação das futuras gerações?

Meus maiores sonhos são a titulação do nosso território e que, por meio da educação, ele se torne um espaço sustentável, onde o desenvolvimento aconteça sem destruir nossa casa comum.

Como você enxerga o sistema político atual em relação às realidades das comunidades tradicionais? Há espaço real para escuta e transformação?

Eu percebo que as comunidades que estão organizadas, estão conseguindo buscar melhorias junto à gestão municipal. Existe sim um diálogo, mas é necessário que sejam feitas reivindicações planejadas de forma coletiva e com respaldo jurídico.

Que mensagem você deixa a outras educadoras e lideranças que atuam com esperança, coragem e compromisso com seus territórios?

Educar é e sempre será um grande desafio, mas é uma missão que nos proporciona muito aprendizado. Educar e transformar vidas é construir sonhos, é possibilitar oportunidades. O educador precisa fazer parte da vida comunitária onde exerce sua função, participar dos desafios e conquistas. São esses momentos que nos fortalecem e nos dão suporte para desenvolvermos trabalhos no espaço escolar — trabalhos que sejam relevantes para que o aluno fortaleça sua identidade.

A entrevista com Wanderly Andrade evidencia a centralidade da educação na construção de territórios sustentáveis e culturalmente fortalecidos. Sua trajetória, marcada pelo envolvimento comunitário e pela defesa dos saberes tradicionais, reforça a urgência de políticas públicas que reconheçam e integrem as especificidades das populações quilombolas no contexto amazônico. Ao relatar os desafios estruturais enfrentados por educadores em áreas remotas, e ao destacar práticas que unem ancestralidade, pedagogia crítica e ação coletiva, Wanderly exemplifica uma educação que forma sujeitos conscientes de sua identidade e capazes de transformar suas realidades. O Diálogos do Norte, ao registrar vozes como a dela, reafirma seu compromisso com o aprofundamento do debate público sobre justiça territorial, inclusão educacional e valorização das lideranças que atuam na base.

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