
Foto: Canva IA
Para ler Orações Malditas, obra de Vinícius Braga, deve-se ter, além de um balde para expelir seus vômitos, o peito aberto para os amolados impropérios e provocações destinados à nossa moralidade intocada e hipócrita. Pode-se dizer que os contos, ou orações, se assim preferirem, são um “manual da crueldade urbana”, transitando em um círculo que tropeça nas vivências fatídicas, nas tragédias cotidianas ignoradas por nossos olhos egoístas, nas violências noticiadas sem surpresas, nos vômitos fétidos e mucosos escondidos por uma maquiagem comprada na promoção pague-um-leve-dois… No entanto, cada parágrafo da obra é envolto numa estética que, antecipando o enjoo, se saboreia a melhor das refeições.
A tensão de cada conto, que, em certa medida, sofremos ou rogamos para não sofrer, escancara a dualidade inescapável entre agressor e agredido, com a indissociável complexidade ao redor das relações de abusos, coações, traumas, decepções, humilhações, fissuras, psicoses e outras inconformidades. Aliás, e quando não estamos imersos por completo nessa dualidade, a aura provocativa de Vinícius toma de assalto o protagonismo na narração. Acompanhe a seguir um breve trecho em sua primeira oração:
“A violência e o cristianismo sempre andaram de mãos dadas. Vejam, por exemplo, a transição do tratamento que o Império Romano proporcionara aos devotos de Jesus. De violentados passaram a ser violentadores, com a oficialização da religião. Como num ato de retaliação, aqueles que foram jogados ao leão passaram a lançar, conforme o tempo caminhou, os novos infiéis às bestas”.
No primeiro conto, que por sinal traz o nome do livro, somos impelidos a ler uma carta de filho para mãe, um desabafo dramático sobre a corrupção carnal no berço da igreja. No conto seguinte, Sangue do meu sangue, temos um ex-professor despejado de sua casa, existindo no submundo dos excluídos sociais, sobrevivendo em torno da própria decadência e sedento por praticar um assassinato. O terceiro conto, Trinta e oito, descreve, entre os curtos raiares do sol, um personagem que reside ora na impotência confusa, ora na insanidade terrorista. Em Onomatopeias, lidamos com uma paixão arrebatadora e covarde, um jovem Werther esculhambado pelo frisson do amor silencioso e pela rotina torturante.
Seguindo o fio de construções fúnebres e atormentadas, O linchamento expressa a trágica trajetória de onanista, um rapaz compulsivo em se masturbar e em penetrar qualquer buraco para que atinja seu clímax animalesco. Já em Infanticídio, texto em que o autor se arvora a escrever um microconto, vemos, reprisando o ritmo das narrativas anteriores, a violência sardônica e imprevisível de uma mentalidade miraculosa. Retaliação, penúltimo conto do livro, acompanhamos com uma surpresa empática a elevação ao extremo da ira de um humilhado trabalhador. Para finalizar, O último orgasmo, nos deparamos com um putanheiro nato, aposentado pela responsabilidade familiar, não conseguindo lidar com o seu irresistível endeusamento por uma travesti.
Os contos da obra prendem a atenção do leitor por um sentimento geral que supus ser a tal da indignação; ela está presente em todos os contos, tanto por motivação de caráter pessoal dos personagens quanto por estar atrelado a outro humano sentimento: ódio, amor, indiferença, rancor, vingança, desejo, pulsão de morte, etc. A indignação é totalitária, está nos textos, na maneira como o escritor escreve, nas motivações individuais e nos anseios coletivos, está no poder, mas também na ausência dele. As orações não permitem pacifismo. Na realidade, parece rechaçar qualquer tentativa de amenizar, pois, acima de tudo, é uma obra radical, que não se contenta com amenidades, que pretende aniquilar os problemas pelas raízes, sem qualquer tipo de pacifismo. Aliás, para que mesmo serve o pacifismo? O pacifismo só é bom quando não sofremos do que costumeiramente tira a paz do outro. O lascado é sempre o outro.
Ademais, se por acaso a leitura de Orações malditas não te fizer paralisar pela contradição intrigante de brutalidade e beleza contida no microcosmo da obra, aí nada te restará a não ser pedir uma orientação divina, dobrar teus joelhos, entrelaçar os nós dos dedos e orar para que nunca sejas um personagem de Vinícius Braga.
Orações Malditas está disponível no site da Caravana Grupo Editorial em sua versão física ou entrando em contato com o autor em sua rede social (@vinicius.sdm).
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