
Escritor Anderson Costa. Foto: Arquivo pessoal
Em Catedral Submersa, livro de Anderson Costa, é retratado o cenário catastrófico e complexo de um desastre natural, mas, sobretudo, de impacto social, recorrente nas áreas de riscos de Manaus: o deslizamento de terras. Agravado pelas ocupações irregulares (popularmente conhecidas como invasão), a retirada da vegetação e as intensas chuvas, o deslizamento de terras compõe o fio narrativo da tragédia anunciada, costurando as vidas dos personagens envolvidos e os desfechos pesarosos advindo do lugar em questão, a comunidade Jesus-me-deu.
A obra te serve de contos, se tu dos contos fores, mas também te serve de romance, se mais achegado dele for. É coerente mesmo caracterizá-la como uma obra híbrida, conveniente às tragédias, já que as facetas a serem narradas dependem da lente dos olhos que se vê, suscitando as mais distintas reações entre o indivíduo e o coletivo afetado, intercaladas pelas memórias, interações e escolhas dos personagens atrelados ao acontecimento.
Os primeiros contos, capítulos ou facetas, enfim, qual definição preferir, dão vigorosas pinceladas sobre o quadro que está a ser pintado, acrescido, evidentemente, o hábil estilo de Anderson, que se utiliza do verde da árvore, do laranja do barro, do marrom da lama e do vermelho do sangue para deslindar a vivacidade da obra de arte.
Na faceta Tripas-coração, primeira pincelada e talvez por isso a mais pujante, temos a composição do cenário trágico da peça, misturando o caos do desastre e os movimentos convulsivos entre clamor, compaixão, iminência e sofrimento constantes. Em Os nus e os mortos toma-se nota, em certa medida, do panorama geral da insensibilidade por parte dos semelhantes das vítimas, fazendo do sepultamento de lama dos inocentes um marco de oportunistas, sensacionalistas e vigaristas indiferentes, cujas lágrimas caem para cima em forma de confetes.
O enredo em grande parte se debruça sobre a vida de Joycemara, assistente social responsável pelo remanejo dos habitantes em risco da comunidade, de sua tia Elza, matriarca e rezadeira popular, e de Riodomar, funcionário do Instituto Médico Legal (IML) e leitor assíduo de As mil e uma noites.
Além da barreira invisível entre mórbidos espectadores sedentos por desgraças e um grupo de excluídos vítimas dessas mesmas desgraças, o escritor demonstra lucidamente os meandros do desastre, suas causas e repercussões, tanto pelo viés governamental, social e político quanto pela experiência pessoal, de proximidade com a tragédia, transbordada de sentimentos chorosos, mas também hostis.
Na minha perspectiva, a desigualdade social é o carro-chefe da problemática central de Catedral Submersa, refletindo nas questões de moradia urbana, da favelização embrutecida, da criminalmente acachapante, da decadência, da negação dos direitos fundamentais, do descaso político a tudo isso e de outros fatores que contribuem cada vez mais para a precarização do ato de (sobre)viver.
Ainda na minha perspectiva intrometida, tendo a concluir que Catedral Submersa traz uma lição preciosíssima para os próprios escritores: as mazelas banalizadas pela insensibilidade geral. A literatura acerca das súplicas do povo, ou seja, nossa súplica, é o que há de mais palpável para um artista de sensibilidade apurada, uma vez que não se abstrai das (nossas) causas populares e urgentes de nossa época, sem abdicar de suas técnicas, referências e habilidades narrativas.
Nesse sentido, a destreza de Anderson Costa em contar história é marcante, pois nela se junta uma amálgama que baila com a dimensão onírica (dos sonhos), a geograficidade manauara, as memórias infantis, a poesia, a revisita às desenterradas trajetórias dos falecidos, a angústia cinza dos vivos… Muito tentador não comparar alguns trechos característicos da cultura amazônica que levam a ruminar um gostinho similar à escrita de Milton Hatoum. Vejam, então, se me engano:
“Tia Elza amargava os peixes. Cravava-lhes no peito a faca cega, num rasgo único, derramando o fel por toda a extensão da carne. Arrancava as vísceras e as arremessava na bacia de zinco amassada. Moscas zuniam no batente reclamando sua porção.
Aos olhos sonolentos da menina, o jirau luminescia com o metal das escamas.
Na casa, reinava uma confusão de cheiros. Um amálgama no qual o pitiú da matrinxã disputava a atmosfera com a arruda, o alecrim, a aroeira e a alfazema.”
E é destas flechadas que as facetas intentam desmantelar o leitor, seccionando a memória dolorosa entre o caos amargo enfrentado pelos personagens e pelas vítimas dos deslizamentos. Há um rio sinuoso entre cada parágrafo, é inegável, contudo, é somente na curva dele que se deposita a matéria do sofrimento alheio, sejam os episódios de identificação e sepultamento de corpos por Riodomar ou os de acolhimento aos desassistidos e das repressões traumáticas por Joycemara.
Riodomar, Joycemara, eu, você, o outro, podemos matutar eternamente se haverá nas curvas do rio um destino que não doa; podemos, o que não podemos é ignorar a sua dor quando vier para doer. Mas, vá lá, de Guimarães Rosa: viver é um rasgar-se e remendar-se. Então remende-se, depois da curva do rio.
Catedral Submersa está disponível na Amazon em sua versão física e digital ou entrando em contato com o autor em sua rede social (@anderson_ascosta).
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