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Marcos Souza

Cactos e Tubarão: a letalidade de uma espetada, de uma mordida e de um microconto

A escrita de Mayanna Velame e sua personificação pelas poucas, delicadas e intrigantes palavras

Cactos e Tubarão: a letalidade de uma espetada, de uma mordida e de um microconto

Escritora Mayanna Velame e sua obra. Foto: Arquivo pessoal

Engana-se quem supõe carecer de explicação as poucas palavras. Um “não sei” por vezes é menos cansativo e mais esclarecedor que um monólogo prolixo; um “ser ou não ser” pode guardar muito mais reflexões que um ensaio filosófico; um “e daí?” discrimina mais um caráter que um certificado autenticado pela moralidade vigente. É o caso do microconto, que justifica a sua grandeza em uma curta narração, acrescida a habilidade e sensibilidade da autoria. Aliás, talvez a sensibilidade seja a primordial característica de um saboroso microconto, tornando-se notório a distinção entre a riqueza de quem faz uma arte esmerada e a pequenez de quem reduz e banaliza o gênero. Cactos e Tubarões, de Mayanna Velame, é um livro rico em sensibilidade criativa, qualidade literária e contribuição ao gênero.

Quando falamos de microcontos, do seu conceito minimalista e da sensação que a leitura causa aos leitores, naturalmente somos impelidos a compará-lo aos demais gêneros. Mais naturalmente ainda, é revisitarmos a tradicional analogia de Júlio Cortázar sobre o conceito do romance e do conto. Para ele, “um romance é uma luta de boxe que se ganha por pontos, e o conto é uma luta em que se ganha por nocaute”. O prefaciador da obra de Velame, Thélio Queiroz Farias, define o microconto, seguindo essa lógica, como uma “vitória por nocaute no primeiro minuto do round”. Arrisco contradizer que o microconto é algo mais precoce, quem sabe seja mesmo uma escarrada antes de a luta começar, cujo lutador escarrado se fixa na saliva rival e desiste da luta, perdendo por W.O.: o leitor que lute.

A fertilidade de criações avulsas presente neste artigo não passa de um sintoma da recém-leitura de Cactos e Tubarões, uma vez que é um livro de conteúdo provocativo, insano pelas lacunas a serem preenchidas e inquietante para com o desfecho seco. Inclusive, por ser seco, somos atiçados a nos molhar com o próximo microconto, depois o próximo, mais uma vez e só mais um, até nos depararmos com o último microconto, que arremata:

Medalhas

Sacou um livro e atirou palavras contra um peito enfeitado de medalhas.

 

E por fim e sempre, Mayanna Velame faz-se líder de uma artilharia altamente armada com vocabulários e munições poéticas. A literatura é uma guerra, é uma guerra cujos ferimentos são vislumbrados com um sorriso de canto de rosto, bem como o microconto a seguir:

 

Gravata

Abandonou a gravata, assim que viu um cãozinho de rua, desfilar livre, nas avenidas da cidade trépida.

 

Não raros os momentos em que o sorriso é substituído por um olhar cabisbaixo:

 

Pai

Todos os dias, eu vejo meu pai. No porta-retrato pendurado na parede.

 

O microconto, mais que qualquer outro gênero literário, exige, além da dita sensibilidade literária, um aguçado conhecimento e percepção das técnicas cabíveis na curta narração. Uma palavra é capaz de demarcar um texto bem-temperado de um insosso. Um erro em um romance gera uma crítica pontual; no conto, uma ferida a ser soterrada pelo desfecho; em um poema, quebra um verso que pode sustentar toda a estrutura; mas, em um microconto, é motivo para anular todo o escrito.

Enfim, há um livro para vocês, leitor e leitora, se saciarem sem cessar, pois, do mesmo modo que podemos inflar nossos pulmões com o ar suspirado e expirar longamente, em um estado de relaxamento, podemos ler e reler os microcontos de Mayana para expandir novamente não o pulmão, mas a nossa domesticada criatividade.

Ah, e se a escritora permitir (se estiver publicado, sim, ela permitiu), terminemos este artigo com o aperitivo de um autêntico clássico:

 

A conversa

Toda vez que converso com meu silêncio…

Mudo.

 

Cactos e Tubarões está disponível em sua versão física na Amazon e na Um Livro ou entrando em contato com a escritora em suas redes sociais.

 

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