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Diálogos do Norte

Elciene Dorzane fala sobre ancestralidade no Quilombo Mondongo de Baixo

Nutricionista e liderança quilombola, Elciene Dorzane reflete sobre saúde, memória, território e os saberes herdados

Elciene Dorzane fala sobre ancestralidade no Quilombo Mondongo de Baixo

Foto: Arquivo pessoal

No estado do Pará, os territórios quilombolas representam mais do que espaços geográficos: são territórios de memória, resistência e vida coletiva. Entre os muitos desafios enfrentados pelas comunidades está o acesso desigual a políticas públicas de saúde, educação e alimentação — temas que se entrelaçam com a defesa da terra, a preservação dos saberes ancestrais e o fortalecimento da autonomia.

Neste episódio do quadro Diálogos do Norte, a nutricionista Elciene Dorzane compartilha, a partir de sua experiência no Quilombo do Mondongo de Baixo, reflexões potentes sobre saúde coletiva, ancestralidade, comunicação popular, enfrentamento das mudanças climáticas e o papel da mulher quilombola. A seguir, confira a entrevista completa.

Quem é Elciene Dorzane?

Elciene é uma mulher que mora atualmente no quilombo Mondongo de Baixo, onde nasci. Hoje, tenho o compromisso com a coletividade de levar a cultura dos meus ancestrais, que inclui a proteção do território. Nesse espaço, cultivamos saberes voltados aos cuidados com a saúde, especialmente através do acolhimento, da cura com plantas medicinais, da cultura alimentar e da folia — cultura ligada ao primeiro contato com a religião, à vaquejada e a outras manifestações. Somos um povo rico em cultura, graças à minha ancestralidade, à qual peço licença para falar com grande gratidão.

A diáspora negra, como propõe Beatriz Nascimento, não se resume ao deslocamento geográfico, mas envolve processos de ruptura e reterritorialização que moldam novas formas de pertencimento. Você viveu por anos em Manaus, onde se formou em Nutrição, e posteriormente escolheu retornar ao Quilombo do Mondongo de Baixo. De que forma essa experiência — de saída, formação e retorno — expressa os caminhos possíveis da diáspora e fortalece o compromisso com o território de origem?

É no momento em que atendemos aos pedidos da família para sair, viver experiências novas — como conquistas, contato com outras culturas e capacitação em habilidades técnicas para o mercado de trabalho — que me sinto realizada como pessoa e como mulher quilombola. Busco essa continuidade todos os dias. Acredito que toda contribuição, seja pequena, média ou grande, gera impactos na sociedade.

Seu trabalho conecta nutrição, saúde coletiva, cultura e comunicação comunitária. Como essas áreas se fortalecem entre si no contexto do quilombo e que papel cumprem na construção da autonomia da comunidade?

O conhecimento ancestral, aliado ao conhecimento do presente, me dá autonomia e liberdade para continuar colaborando em casa e onde for necessário. Quem ajuda sua comunidade vê sua colaboração ultrapassar as fronteiras geográficas.

O acesso à alimentação adequada é uma das expressões mais concretas de justiça social e soberania dos povos. No contexto do Quilombo do Mondongo de Baixo, quais são os principais obstáculos enfrentados nesse campo?

Diante do cenário das mudanças climáticas, do desmatamento e das grandes queimadas — que afetam não só nosso território, mas o mundo todo —, surgem obstáculos que precisam ser enfrentados. Isso exige que os cidadãos atuem com resistência e sabedoria, construindo alternativas para garantir seus direitos básicos e uma melhor qualidade de vida.

A ciência da nutrição, muitas vezes, se baseia em padrões universais e distantes da realidade dos povos tradicionais. Como você lida, na prática, com as tensões entre esse modelo técnico e os saberes alimentares do quilombo, construídos pela experiência, ancestralidade e relação com a terra?

Não, os padrões não estão distantes. Eles estão próximos, desde que se respeite o direito à cultura alimentar e à proteção do meio ambiente local e do habitat dos seres vivos. A construção de palestras que empoderam e valorizam nosso estilo de vida — como povos da floresta — é fundamental. Devemos cultivar o respeito por todos os seres dos nossos biomas. Assim, a preservação dos saberes e da ancestralidade, passada de geração em geração, torna-se um compromisso com o cuidado da terra, nosso abrigo.

A comunicação popular tem sido um dos seus campos de atuação, especialmente por meio do projeto Conexão Livre. De que forma a circulação autônoma de informações fortalece a identidade quilombola e contribui para a criação de redes que respeitem os valores e o tempo do território?

As informações compartilhadas fazem parte da minha ancestralidade. Por isso, busco parcerias para a implementação de projetos cujo objetivo principal é a contribuição mútua em áreas como educação, cultura e outras atividades articuladas para a evolução dos seres humanos.

A preservação da memória e dos saberes ancestrais é fundamental para a continuidade da identidade quilombola. Como a sua comunidade lida com essa transmissão de conhecimento entre gerações?

No território, os conhecimentos são passados de geração em geração. Na prática, os espaços de diálogo respeitam os mais velhos, e as decisões da coletividade são parte fundamental da história e do fortalecimento da cultura da comunidade.

Sua comunidade enfrenta dois extremos ao longo do ano: as cheias que alagam o território e, no verão, a seca intensa que dificulta o acesso. Como esses ciclos naturais afetam o cotidiano da educação no quilombo?

Com o passar dos anos e as mudanças climáticas, os impactos tornaram-se visíveis, desde a migração e o abandono de abrigos por povos tradicionais até a transformação de lugares sagrados. Hoje, essas áreas se tornaram ambientes desafiadores para viver. Garantir políticas públicas para todos é garantir direitos. Para isso, parcerias entre gestores e a coletividade devem ser construídas por meio do diálogo e das demandas específicas de cada situação.

Como liderança, mulher negra e profissional da saúde, como você avalia hoje a presença — ou ausência — do Estado nas comunidades quilombolas?

Acredito que, não apenas nos quilombos, mas em outros locais, haverá avanços, conquistas e também ausência de políticas públicas. Tudo dependerá da educação e do compromisso do Estado com mudanças reais. E eu acredito que sim, é possível transformar com compromisso com a coletividade e, principalmente, com cada ser humano.

Que mensagem você gostaria de deixar às mulheres negras e quilombolas que seguem firmes na construção de seus territórios, conciliando cuidado, saber e resistência no cotidiano?

Sou neta de uma mulher preta que me acolheu em suas mãos. Ela era parteira. Hoje, busco também honrar, em minha vida, sua contribuição. Não é fácil! Mas vai além — devemos seguir. Mulheres, se amem, se cuidem, pois só vocês podem fazer isso por vocês!

A fala de Elciene Dorzane reafirma que as comunidades quilombolas não apenas preservam memórias, mas constroem presente e futuro com base em princípios de solidariedade, cuidado e resistência. Suas ações mostram como o conhecimento técnico e os saberes ancestrais podem caminhar juntos na promoção da dignidade e da autonomia coletiva.

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