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Colunista

Ailane Brito

Quando ser mãe é ato político: vozes que desafiam o silêncio

Que tipo de sociedade queremos construir, senão uma onde toda mulher possa existir plenamente, com seus filhos ao lado e sua voz no centro? É tempo de reconhecer: onde há uma mãe resistindo, há futuro sendo gestado

Quando ser mãe é ato político: vozes que desafiam o silêncio

Foto: Reprodução/ Canva IA

Neste Dia das Mães, eu escrevo com indignação e com esperança. Indignação por ver tantas mães sendo ignoradas, apagadas, julgadas. E esperança porque sei que, ao contarmos essas histórias, ao ocuparmos esses espaços, estamos desenhando novos caminhos, menos solitários, mais justos. Porque toda mãe merece ser lembrada, não apenas com flores, mas com respeito, acolhimento e estrutura.

Falam muito da força da mãe solo, da garra da mãe atípica, da coragem da mãe na política, da determinação de mais plurais. Mas esquecem que essa força é muitas vezes forjada na dor, na necessidade e na omissão do Estado.

As mães solos, que segundo o IBGE já somam mais de 11 milhões no país, continuam sendo invisíveis na formulação das políticas públicas. O Estado lhes cobra impostos, mas não oferece estrutura: não há rede de apoio, moradia digna, nem garantia de trabalho com flexibilidade. São chefes de família sem o reconhecimento nem os direitos que tal título exigiria. Muitas seguem na luta, mas à margem, quando não sob o peso da criminalização da pobreza.

Quando a maternidade se cruza com a universidade, o romantismo cede lugar à dura realidade de quem vive sem apoio, sem políticas públicas, sem descanso. A fala a seguir expõe essa vivência que resiste à lógica excludente do ensino superior:

Ana Helena e seu bebê.

“Sou mãe. E sou universitária. Vivo em trânsito entre os cuidados com os filhos, os compromissos curriculares e meu trabalho. Já precisei decidir entre a sala de aula e a sala de espera do hospital. Já perdi prazos acadêmicos por precisar cuidar de um filho. Já ouvi professores dizendo que ‘maternidade não pode ser desculpa’. Mas não é desculpa, é realidade. Uma realidade que a universidade não acolhe. E o que mais a gente ouve é que a gente faz o nosso tempo, como se a gente pudesse determinar que o dia tivesse mais que vinte e quatro horas. Infelizmente, não tem essa compreensão fácil dos professores e dos colegas.” (Ana Helena Canto)

O relato de Ana Helena é mais do que um desabafo, é uma denúncia silenciosa de um sistema que insiste em ignorar as múltiplas jornadas das mulheres-mães. Quando a universidade fecha os olhos para essa realidade, ela contribui para a exclusão de corpos e histórias que deveriam ser reconhecidos, respeitados e incluídos.

A universidade brasileira, em sua maioria, continua sendo um espaço hostil para quem materna. As políticas de permanência não a consideram. Os editais não a incluem. Os professores, muitas vezes, a julgam por não ter lido o texto ou por atrasar um trabalho, sem imaginar que ela passou a madrugada cuidando de uma criança com dor.

A seguir, outro depoimento de uma mãe que escreve seu futuro com uma mão, enquanto embala o presente com a outra.

Maria Francilane e sua filha.

“Minha bebê chora enquanto tento me concentrar em artigos. A dor nas costas, a privação de sono e a culpa são minhas companheiras. Mas sigo. Porque quero que ela cresça sabendo que sua mãe não desistiu, mesmo quando tudo era contra. Quero que ele saiba que estive presente, não apenas nos cuidados diários, mas também nos meus próprios sonhos. Que lutei para construir um futuro melhor para nós duas, mesmo nos dias em que eu mesma duvidava se daria conta.” (Maria Francilane Ferreira)

A fala de Maria Francilane revela a força silenciosa que tantas mães carregam no cotidiano. Não é apenas sobre conciliar tarefas, é sobre afirmar sua humanidade em meio ao cansaço, à culpa e ao amor. Quando uma mãe persiste nos estudos com o bebê nos braços, ela está não só buscando um diploma, mas rompendo com ciclos de exclusão que se perpetuam há gerações. Ela não sonha sozinha: sonha por dois. E isso é um ato político.

Há quem pense que ser mãe e ser universitária são escolhas incompatíveis. Mas a realidade grita o contrário, todos os dias, nossas vozes desafiam a estrutura excludente do ensino superior. Reflitam sobre o relato de mais uma dessas mães que resistem, não apenas por si, mas pelos filhos, pela dignidade e pelo direito de sonhar.

Marta Travassos e filhos.

“Vivo à beira do colapso, mas sigo. Porque acredito que minha formação é também um ato de resistência. Porque quero que meus filhos vejam que sua mãe não desistiu, mesmo quando o mundo todo parecia feito para que ela não conseguisse. Não peço privilégios. Peço humanidade. Peço políticas que nos reconheçam, que nos abracem sem julgamento. Ser mãe e ser estudante não deveriam ser forças opostas. Eu sou as duas. E mereço existir plenamente em ambos os espaços.” (Marta Travassos)

O que Marta pede não é demais, é o mínimo. Reconhecer a maternidade como parte legítima da vida acadêmica é romper com um modelo ultrapassado, que ainda tenta moldar estudantes em padrões desumanos. As universidades precisam ouvir nossas vozes e transformar suas práticas. Porque quando uma mãe resiste na universidade, ela não está apenas se formando: está forjando um caminho para que outras também possam chegar.

Antes de a aula começar, muitas de nós já vivemos uma maratona invisível, de cuidados, decisões difíceis e renúncias silenciosas. O nosso tempo é medido em esforços sobrepostos, e nossos corpos carregam não só mochilas e livros, mas também a responsabilidade de transformar o futuro. O próximo relato, é sobre a batalha das estudantes-mães que fazem da resistência um ato cotidiano.

Natasha Paiva e sua filha.

“Acordo às cinco da manhã. Não porque quero, mas porque o dia me exige. Faço café, preparo a minha filha e me preparo também, não só para a aula, mas para resistir. A aula na universidade começa às oito, mas antes disso já lavei roupa, organizei a casa, deixei um almoço meio pronto…Já apresentei seminário com o coração apertado por ter deixado minha filha doente, sem ter com quem ficar. Mas sigo, porque sei que essa graduação é um caminho para que ela tenha uma vida diferente. Mais justa.” (Natasha Paiva)

O que a sociedade chama de rotina, para nós mães, é uma batalha diária por dignidade. A Natasha nos lembra que a permanência de mães na universidade não depende apenas de esforço pessoal, mas de políticas públicas que compreendam e acolham essas vivências. É urgente transformar as estruturas para que nenhuma mãe precise escolher entre estudar e cuidar. Nós merecemos os dois, com dignidade.

Precisamos de leis que garantam creches públicas e acessíveis, auxílios reais para mães estudantes, atenção à saúde mental materna, valorização do trabalho de cuidado e representatividade política sem estigmas. Mãe não é só amor, é resistência. E precisamos de respaldo, não de romantização.

E quando o assunto é sobre mães atípicas, que enfrentam o despreparo do sistema de saúde e da educação, além do preconceito cotidiano. Elas carregam nos ombros o papel de cuidadoras, sem descanso, sem apoio, sem políticas de respiro. O que o Dia das Mães lhes oferece? Silêncio. Cansaço. Lembrancinhas escolares feitas às pressas por professoras também exaustas e subvalorizadas. O relato a seguir dá voz a uma dessas tantas mães que não têm escolha entre estudar e lutar: fazem os dois, todos os dias.

Raquel Alves e filhos.

“Quando a maternidade é atípica. Quando o filho precisa de terapias, de laudos, de remédios negados pelo SUS. Quando a escola não está preparada e o sistema de saúde trata seu filho como um número em uma fila interminável. Agora imaginem tudo isso somado a trabalhos acadêmicos, provas, estágios. Eu não preciso imaginar. Eu vivo. E não, não sou exceção. Somos muitas, mas invisíveis. Estar na universidade com essa identidade é carregar dois mundos nas costas: o acadêmico e o da luta por direitos básicos.” (Raquel Souza Alves)

O relato da Raquel escancara uma ferida aberta, que muitos fingem não ver. A universidade, com todo seu discurso de inclusão, ainda não está pronta para lidar com a complexidade da maternidade real. Muito menos com a maternidade atípica. Raquel traduz uma dor coletiva que raramente chega aos debates institucionais.

Falar de permanência e inclusão sem considerar essas vivências é perpetuar exclusões disfarçadas de neutralidade. Não estamos falando de concessões ou favores. Estamos falando de direito à permanência.

Já aconteceu comigo. Precisei faltar à aula para cuidar da minha filha. Informei ao professor, que respondeu com compreensão. Mais tarde, quando retornei para apresentar um trabalho, tive que sair novamente às pressas para socorrê-la. O mesmo professor me disse que eu poderia sair logo após a apresentação. Fiz o que pude, cumpri o combinado, apresentei bem, ele mesmo elogiou. Mas, quando a disciplina foi encerrada e as notas lançadas no sistema, lá estavam registradas dez faltas pelos dois dias em que precisei me ausentar. E, junto com as faltas, veio o peso: minha nota foi comprometida. Mesmo eu tendo feito, nas palavras dele, uma excelente apresentação.

A permanência universitária precisa deixar de ser pensada apenas em números, notas e frequência. Permanecer, para nós mães, é um ato diário de resistência. É estudar entre sessões de terapia, fazer estágio com o coração partido por deixar o filho, apresentar trabalho sem ter dormido à noite. É se sentir culpada por estar ausente em casa, e ao mesmo tempo, por não render o suficiente na universidade.

E mesmo assim, seguimos, com olheiras, mas com esperança; com cansaço, mas com coragem. Forçam-nos a olhar para o quanto nossas estruturas são excludentes, machistas e capacitistas. E é por isso que os nossos relatos não podem ser apenas ouvidos: devem ser transformados em pauta, em projeto, em política concreta.

Falando em política, e quando as mães ousam ocupá-la? Elas não apenas rompem barreiras, elas redefinem prioridades. Porque as decisões que afetam a infância, a maternidade, a saúde reprodutiva e a educação precisam da voz delas. A seguir o relato da vereadora que não permite que o machismo institucional limite seu espaço e sua potência.

Izalina Alves, mãe e vereadora de Óbidos, no Pará.

“Ser mãe e vereadora é viver com diversos desafios, mas também é provar que nós podemos, e devemos estar nesses espaços. Porque enquanto a política for feita apenas por quem não sabe o que é faltar leite, medicos, medicamentos ou vaga na creche, ela continuará distante da realidade da maioria… Por isso luto pelas demandas das mães atípicas, da mãe empreendedora… Entendo na pele o que significa ser invisibilizada e, por isso mesmo, luto para que nenhuma mãe, nenhuma mulher, nenhuma criança, continue sendo esquecida pelo poder público. Carrego comigo a força da mulher obidense!” (Izalina Alves)

Ser mãe e fazer política, neste país, ainda é um ato de desobediência. A presença de mulheres-mães nos espaços de decisão incomoda, desafia e desnuda o machismo institucional que resiste em aceitar que a maternidade é, sim, uma dimensão política.

A fala da vereadora Izalina Alves é potente e necessária. Ela escancara um dos principais problemas da política tradicional: o distanciamento entre quem decide e quem sente, no cotidiano, os impactos dessas decisões. Ao afirmar que ser mãe e vereadora é viver em conflito, Izalina não apenas humaniza a figura da política mulher e mãe, mas também denuncia a sobrecarga enfrentada por tantas mulheres que, mesmo diante dos desafios, seguem ocupando espaços historicamente negados a elas. Sua fala é um grito coletivo das que já cansaram de esperar por representatividade e decidiram ser a própria voz. É política com afeto, coragem e pertencimento.

Mães na política não representam só a si mesmas. Representam a ruptura com a lógica que separa a vida pública da vida real. Representam a possibilidade de uma política que cuida, escuta e transforma. E, por isso, precisam ser não só respeitadas, mas incentivadas, eleitas e protegidas.

Portanto, cada passo dado por essas mulheres é um ato de coragem que desafia séculos de invisibilidade. Elas provam que o cuidado e a maternidade não são obstáculos, mas forças motrizes de mudança. Que tipo de sociedade queremos construir, senão uma onde toda mulher possa existir plenamente, com seus filhos ao lado e sua voz no centro? É tempo de reconhecer: onde há uma mãe resistindo, há futuro sendo gestado.

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