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Tamyse Oliveira

Mulheres lésbicas e a performance da feminilidade

É sabido que tais discussões ainda são pautas sensíveis e confundem o senso comum, uma vez que rompem com uma estrutura antiga e concreta imposta pela matriz heterossexual e normativa

Mulheres lésbicas e a performance da feminilidade

Imagem gerada por Inteligência Artificial

Desde muito cedo, as sociedades envolvem os seus indivíduos em uma estrutura que determina a existência de um modelo binário, ou seja, aquele representado por apenas dois gêneros: masculino e feminino. Nessa lógica, o sexo biológico passa a ser associado a conjuntos e práticas que buscam a “naturalidade” de determinadas relações. Contudo, o gênero é fluído e se constrói a partir de ações, como a forma de nos vestirmos, falarmos, expressamo-nos e nos relacionarmos, conforme defende a renomada filósofa e teórica norte-americana Judith Butler, na obra Problemas de Gênero (1990).

Iniciar esta breve reflexão através das lentes de Butler é entender que há uma construção social sobre o que se espera de homens e mulheres e, na outra margem, contrariando essa “natureza”, estão aqueles que formam a esfera LGBTQIAPN+. 

A noção relacionada a essa construção social de gênero, porém voltada às  mulheres, foi percebida ainda nos anos de 1950 pela escritora, filósofa e feminista francesa Simone de Beavouir, na obra O Segundo Sexo (1949), na qual propõe a disscussão de que “não se nasce mulher, torna-se mulher”, e, em contraponto ao existencialismo que vê o homem como um ser universal, define-a como o “Outro” em relação a ele, em uma desigualdade e subordinação justificadas, principalmente, por meio de “mitos” de “natureza feminina” vistos ao longo do tempo em diferentes sociedades. 

Judith Butler, ainda, apresenta o conceito da matriz heterossexual, cuja significação estabelece que mulheres devem desejar homens e, assim, manter a “ordem social”.  Essa configuração, contudo, é rompida pelas relações lésbicas, demonstrando que sexualidade e gênero, apesar de próximos, não dividem o mesmo significado.

Mulheres vestidas com trajes considerados masculinos e femininos em ensaio fotográfico, 1912.

Mulheres vestidas com trajes considerados masculinos e femininos em ensaio fotográfico, 1912. Fonte: Corbis via Getty Images/Elle Brasil

O que se pretende dizer é que, com base nas expectativas quanto ao papel das mulheres em uma sociedade tal como apresentou Simone de Beauvoir e nas performances de gênero apontadas por Judith Butler, mulheres lésbicas que não desempenham e/ou performam a feminilidade esperada estão fora das regras sociais e, por isso mesmo, sofrem cotidianamente diversas micro e macro violências.

 Não é à toa que, desde a infância, a sociedade coloca em “caixas sociais” as diferentes subjetividades, ditando o que é pertencente aos meninos e às meninas, a favor de um projeto determinante sobre o que esperar dessas personas. Nessa lógica, não é necessário detalhar as características moldadas por essa construção social, afinal, todas já nos são familiares. Ainda assim, é inegável que, justamente nas curvas dessas performances, manifestam-se as violências contra mulheres lésbicas desfeminilizadas ou, simplesmente, mulheres desfem.

Segundo dados do LesboCenso Nacional de 2022, que ouviu cerca de 22 mil mulheres lésbicas, 78,61% das entrevistadas afirmaram já ter sofrido algum tipo de lesbofobia. Entre as mais citadas estão o assédio moral (31,36%), o assédio sexual (20,84%) e a violência psicológica (18,39%).

Gradualmente, os casos começam com o uso incorreto do pronome, quando direcionado a mulheres desfem, avançando para a anulação de seu gênero, afinal, essas mesmas figuras, ao não corresponderem às expectativas sociais, nem são consideradas mulheres e, por isso, têm seus talentos, habilidades e capacidades profissionais questionados constantemente, principalmente em espaços de trabalho.

Além disso, de uma perspectiva pessoal e convicta, são comuns os episódios envolvendo olhares discriminatórios em banheiros e provadores femininos, bem como a insegurança constante que antecede qualquer conversa e interações com alguém desconhecido, momento em que paira a mudança súbita no tratamento ou o receio alheio em se dirigir a uma mulher que não se enquadra no padrão de feminilidade. Essa e outras situações, claro, dependem de cada vivência, mas, como todo preconceito, afetam a autoestima, a autoimagem e a saúde mental de mulheres desfem, revelando a complexidade e a gravidade das pequenas, que se tornam grandes, violências de gênero.

1º Encontro Fórum Lésbicas de Maricá, 2023. Fonte: Prefeitura de Maricá.

É sabido que tais discussões ainda são pautas sensíveis e confundem o senso comum, uma vez que rompem com uma estrutura antiga e concreta imposta pela matriz heterossexual e normativa. No caso das mulheres lésbicas desfem, além da quebra da matriz heterossexual, esse grupo desafia a lógica das performances de gênero. Isso porque, considerando as relações sociais, as mulheres desfem, por vezes, estão à margem do conceito de beleza construído pela heteronormatividade. 

bell hooks, ativista antirracista, professora e escritora estadunidense, defendia, em muitos de seus ensaios, alguns previstos na obra Anseios: Raça, Gênero e Políticas Culturais (1980), essa lógica de construção social do que é belo, condicionada e influenciada por instituições de poder. Apesar de aplicar tal teoria  às lutas das mulheres negras, a ideia de beleza é válida nesse contexto, posto que, na heterocisnormatividade, existe um padrão estético muito bem definido, requisito muitas vezes não atingido por mulheres lésbicas desfem.

Vale pontuar, ainda, que a ausência frequente de representações de mulheres desfem nas grandes mídias ou em redes influenciadoras é uma prova da negação dessas identidades e da reafirmação de padrões preestabelecidos. Ainda que existam poucas representações disso, elas são do conhecimento de bolhas sociais específicas, como a própria comunidade LGBTQIAPN+, e num cenário ainda mais pessimista, limitadas apenas às siglas LBTQ.

A partir das lógicas supracitadas, deseja-se, com tudo isso, incitar reflexões e debates sobre gênero, suas performances e violências. O mês da visibilidade lésbica (agosto), estabelecido no Brasil desde 1996, após o 1º Seminário Nacional de Lésbicas (Senale), no Rio de Janeiro, é o momento ideal, mas não o único, para trazer à luz pautas acerca das expressões e performances de gênero que vivem nas curvas dos padrões estabelecidos pela heteronormatividade, reivindicadas no âmago de mulheres desfeminilizadas, tanto em seu passado histórico, que resistiu na luta por direitos e existência da comunidade LGBTQIAPN+, quanto nas reafirmações identitárias da contemporaneidade rumo à gradativa quebra de matrizes heteronormativas.

Cartaz de divulgação do 1º Seminário Nacional de Lésbicas (Senale).

Cartaz de divulgação do 1º Seminário Nacional de Lésbicas (Senale). Fonte: Grupo Dignidade

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