
Foto: Canva IA
Agora mesmo estou aqui, tomando meu café, desses passados no coador de pano, como aprendi a gostar. Enquanto a xícara aquece a mão, ouço, ao longe, a voz da saudosa Marília Mendonça saindo do som do vizinho — dessas vozes que cantam a gente. E, lá no céu, o azul limpo serve de pano de fundo para os urubus que dançam uma coreografia herdada da mãe natureza. Sempre me encantou isso: o voo. Todo pássaro é divino, até os mais rejeitados pela estética ou pela ignorância da gente. Os urubus, com sua função essencial de limpar a natureza, têm um papel de excelência no ecossistema, eliminando restos orgânicos e contribuindo para o equilíbrio ambiental — mas isso quase ninguém gosta de admitir.
Enquanto tudo isso acontece, olho para esse café e penso: quando foi que ele virou luxo? E não estou falando de cápsula nem de café importado. Estou falando desse nosso de cada dia, o do pacotinho do supermercado. Está caro. Está elitizado. Parece até que virou privilégio, como se só alguns pudessem começar o dia com cheiro de café.
Aí me vem à memória meu amigo Hélio. O da vida real, não o do conto que escrevi. Porque, veja só, uma vez usei o nome dele numa história chamada Casado com o Diabo e, desde então, tem quem confunda os dois — como se a ficção tivesse roubado a identidade do amigo. Mas isso é conversa pra depois. O que importa é que o Hélio, dia desses, foi fazer um atendimento na casa de um cliente. Atendimentos desses em domicílio, onde a conversa é pouca, mas o ambiente fala alto.
Nada rendia. O clima meio travado. Até que ele viu duas garrafas de Bohemia vazias sobre a mesa, já denunciando que a noite anterior tinha sido mais solta que o dia atual. Ofereceram água; ele agradeceu, mas recusou. Aí, a esposa do cliente perguntou se ele queria café. Ele aceitou. E, nesse intervalo, o velho cliente, sem levantar os olhos, soltou: “É… o café tá caro.”
Aquilo ficou ecoando. Não era só sobre o café da casa. Era sobre o Brasil: o país que planta, colhe, torra e exporta o melhor café do mundo, mas deixa para o seu povo o que sobra. O Brasil, que é o maior produtor e exportador de café do mundo, vê sua riqueza ser consumida por outros, enquanto o próprio povo luta para conseguir o que sobra. E o povo, pasmem, ainda comemora o lucro do agro como se fosse sócio, defende os grandes como se ganhasse comissão. Mas o que chega no prato, ou na xícara, é só o que sobrou da festa.
Tem gente que acha bonito ver os números da exportação subindo, os donos de terra crescendo, as empresas batendo recorde. E, enquanto isso, o trabalhador faz conta para ver se dá para levar um pacote de 250g. A cada aumento, um suspiro. A cada gole, uma conta. E o mais curioso é que o próprio povo que sofre é quem mais defende esse modelo, como se um dia fosse ser recompensado por tanta lealdade ao agronegócio e à falsa ideia de progresso — progresso esse que passa longe do prato e da xícara do trabalhador.
Talvez esse seja o verdadeiro pacto com o diabo: torcer contra si mesmo, vibrar por quem lucra com a escassez alheia. O diabo, afinal, não precisa ter chifre; basta ter poder e ser aplaudido por quem ele explora. O Hélio do conto parecia vítima de uma traição. Mas o Hélio da vida é testemunha desse casamento estranho entre o povo e quem só dá migalha.
O céu segue azul. Os urubus continuam sua coreografia herdada da mãe natureza. E o café aqui na minha xícara vai acabando. Sobra o gosto amargo, não do pó, mas do sistema. E, antes que perguntem: não, o Hélio do conto não é o da vida. Mas ambos, de um jeito ou de outro, estão lidando com os efeitos de um pacto. E nem precisam de fogo nem de enxofre para isso. No Brasil de hoje, o diabo nem assina contrato — só manda a conta. E, a cada gole, a gente confirma: o diabo é que tá caro.
Leia mais:
