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Miller dos Santos

A CPI e o espetáculo da política contemporânea

Entre a transparência e o marketing político, as comissões parlamentares se transformam em arenas de autopromoção e disputa por visibilidade digital

A CPI e o espetáculo da política contemporânea

Foto: IA

Desde a sua criação, a CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) tem uma função essencial: permitir que a sociedade saiba o que é feito com o seu dinheiro, corrigindo rotas e detectando irregularidades. Segundo o Senado Federal, com base no artigo 58, parágrafo 3º, da Constituição, a CPI é um instrumento de investigação do Poder Legislativo, criado para apurar fato determinado e por prazo certo, com poderes de autoridade judicial, a fim de fiscalizar e esclarecer situações de interesse público. Essa é, portanto, a sua finalidade legítima e constitucional. Mas, na prática, nem sempre o instrumento cumpre esse papel com a seriedade que deveria.

Nos últimos anos, as CPIs têm se tornado cada vez mais um grande espetáculo midiático. Tudo é transmitido, comentado e transformado em cortes e fragmentos adaptados para plataformas digitais, em busca de visualizações e de algoritmos inflados. Parlamentares se preparam não para investigar, mas para performar. O que deveria ser uma arena de fiscalização converte-se em um palco de autopromoção. A busca por visibilidade supera o compromisso com o resultado. O problema não está na CPI em si, mas no modo como ela vem sendo utilizada – mais como vitrine política em ambientes digitais do que como instrumento de correção de distorções e fortalecimento da transparência.

Essa distorção acompanha uma nova lógica da política contemporânea. Inspirando-se na crítica de George Orwell, em 1984, é possível dizer que vivemos sob o olhar de um grande smartphone que tudo observa. A política passou a funcionar como uma vitrine de exposição contínua, na qual o que se mede não é mais a eficiência, mas o engajamento. Essa vigilância simbólica, exercida pelo olhar do público, estimula o comportamento performático. Como observam Byung-Chul Han e Shoshana Zuboff, vivemos uma era em que a visibilidade é poder e a exibição se torna método de controle.

É como se a campanha política nunca terminasse. Mesmo depois de eleitos, muitos políticos seguem em ritmo de eleição permanente. Passam quatro anos produzindo conteúdos, gravando vídeos polêmicos e encenando indignação para manter a relevância nas plataformas. Sempre há um novo inimigo a ser combatido, uma nova causa para ser explorada. A retórica é inflamável, mas o conteúdo é raso. A política, reduzida a gestos midiáticos, vira uma sequência de pequenas encenações de heroísmo.

Ao invés de propor soluções, buscar verbas, investimentos e parcerias, parte significativa dos políticos parece ter como principal meta alimentar o próprio canal de comunicação. Cada discurso é pensado para render engajamento. Cada sessão vira um episódio. Cada adversário, um enredo. A análise do discurso político, como lembra Patrick Charaudeau, mostra que o poder simbólico se constrói pela encenação pública da moralidade. Assim, muitos se tornam personagens de si mesmos, atuando como fiscalizadores de fachada em um teatro de visibilidade que ocupa o lugar do trabalho parlamentar.

Esse comportamento tem reflexos diretos nas CPIs. Há comissões criadas mais pela promessa de projeção midiática do que por necessidade de apuração. Políticos chegam às sessões preparados para a cena, com falas ensaiadas e estratégias de divulgação planejadas. A investigação real, com sua rotina técnica e silenciosa, perde espaço para o espetáculo. Pior: quando quem lidera a comissão carrega histórico de escândalos, o risco é que o processo sirva apenas como tentativa de reconstrução de imagem. A memória curta do eleitor alimenta o ciclo.

Os efeitos não se limitam ao campo político. Há danos pessoais e sociais. Uma CPI pode transformar pessoas comuns em alvos de exposição. Alguém convocado para depor, mesmo sem culpa, pode ter sua reputação destruída em questão de minutos. A imagem que levou uma vida para ser construída se desfaz sob o olhar público. E reconstruí-la é tarefa quase impossível. Essa banalização da imagem humana em nome da autopromoção política é um dos sintomas mais preocupantes do uso irresponsável do poder midiático.

Também há o custo financeiro. Manter uma CPI significa mobilizar pessoal, diárias, logística e tempo legislativo. Estudos do Instituto Legislativo Brasileiro mostram que grande parte das CPIs tem baixo retorno institucional em relação ao custo político e orçamentário. Em outras palavras, o cidadão paga caro por comissões que, muitas vezes, não produzem resultado algum. Quando o relatório final não gera encaminhamentos, quando nada é recuperado, o contribuinte financia apenas mais uma encenação.

Existem exceções que mostram que é possível fazer diferente. A CPI da Pandemia (2021) produziu material probatório relevante e trouxe à tona falhas graves na gestão da crise sanitária, ainda que a maioria das recomendações dependa de instâncias externas. A CPI da Braskem (2024) manteve rigor técnico, resultando em indiciamentos e propostas de regulação ambiental. Já a CPI das Bets (2025) ilustra o oposto: enorme repercussão, transmissões diárias e nenhum resultado concreto. Esses contrastes revelam que o problema não está na ferramenta, mas em quem a conduz – e no propósito que a orienta.

O eleitor precisa aprender a olhar além do espetáculo. Fiscalizar também é função do cidadão. Antes de se deixar levar por cortes de fala e discursos ensaiados, é necessário buscar relatórios finais, encaminhamentos ao Ministério Público e resultados efetivos. A CPI é um mecanismo constitucional de transparência e não um palco de autopromoção. O desafio é resgatar sua essência, devolver-lhe o sentido público e romper o ciclo de campanhas infinitas travestidas de fiscalização. Democracia não se sustenta em aplausos, mas em resultados. E, para isso, é preciso menos espetáculo e mais responsabilidade.

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