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Análise da Conjuntura Bovina

A cultura amazônica se destaca no Festival de Parintins com temas antirracistas, feministas e valorização de saberes ancestrais

Análise da Conjuntura Bovina

Foto: Reprodução

Sem querer (querendo) provocar nenhuma polêmica, mas muitos olhares devem ter percebido um Festival Folclórico de Parintins em que, cada vez mais, há uma sensibilização crescente sobre as dinâmicas sócio-históricas discutidas na sociedade contemporânea.

A cada ano, abre-se mais espaço para as narrativas que por muito tempo foram marginalizadas na produção de conhecimentos culturais, artísticos e acadêmicos.

O evento, que se destacou ainda mais este ano, especialmente pela participação da amazonense Isabelle Nogueira, projetou nas telas nacionais e redes sociais uma das maiores celebrações da cultura do nosso estado dos últimos tempos. Isso traz algumas nuances dignas de reflexão.

São leituras sutis que podem abrir possibilidades para diálogos educativos, antirracistas e até mesmo filosóficos.

Nas canções, apresentações e nas brincadeiras provocativas dos brincantes nas ruas e redes sociais, nos versos desafiadores entoados pelos amo-do-boi, destacam-se questões como raça, intolerância religiosa, sexismo, homofobia, luta de classes e a valorização dos saberes ancestrais dos povos originários.

Por exemplo, uma das toadas mais tocadas este ano entoa que “a ponta do chifre é a lança que avança contra o racismo e a intolerância”.

Li em algum texto divulgado nas mídias que a ponta do chifre simboliza uma arma de luta contra as injustiças e desigualdades raciais presentes na sociedade brasileira.

A letra da música também enfatiza a cor preta do boi, tratando-a como símbolo de beleza e poder. Essa cor, historicamente no Brasil, teve e ainda tem conotação negativa, sendo parte de um discurso sustentado por uma elite social que promove uma cultura de branquitude para manter sua hegemonia e poder econômico em todo o país.

No entanto, esta música faz parte da trilha sonora de um boi considerado na história do festival como um boi de elite. Percebe-se, então, essa elite permitindo que seu boi seja reconhecido por sua pretitude, algo que nem sempre foi enfatizado, talvez para suavizar esse paradigma, criando uma identidade coletiva mais popular, racialmente instruída e consciente.

Entretanto, parece que descobriram agora que o boi é preto. Ouvia-se falar muito em “sangue azul”, uma expressão do senso comum que remonta à nobreza.

Os amo-do-boi tiveram um papel de destaque nesta festa. Em suas versões cheias de deboche burlesco que marcam a rivalidade característica do festival, percebe-se momentos que refletem a luta de classes mencionada anteriormente.

Isso ocorre porque, de forma dialética, o boi vermelho é conhecido como o boi do povão e faz questão de destacar sua origem periférica, tradicional, “pé rachado” ou “perreché”, do povo simples e trabalhador.

Como apoiadora do boi preto, sinto grande felicidade com a escolha desta temática antirracista, que mostrou ao mundo, neste ano em que o povo do Amazonas parece ter sentido mais orgulho de sua forma de vida e de ser, a importância da valorização de nossa história, cultura e identidade, que se originam da fusão africana e indígena.

A letra da toada também aborda a questão da intolerância religiosa, destacando os sons dos tambores, atabaques e agogôs, instrumentos de origem africana que atravessaram o mar na diáspora forçada e são parte integrante do contexto religioso dos povos que se refugiaram nos quilombos para escapar da opressão da escravidão.

Neste sentido, a beleza de todo este enredo está na mensagem que transmite à sociedade em geral, assim como à elite social.

Que este som ressoe e abale as estruturas racistas, conservadoras, aristocráticas e, acima de tudo, da elite amazonense!

Outro tema notável foi o das mulheres. Algo que já estava acontecendo, mas que se destacou este ano foi a presença feminina assumindo papéis antes reservados aos homens, como a condução das indumentárias do item “Tuxauas”.

Além disso, foi algo incomum ver mulheres tocando atabaques na arena. Em alguns rituais de certas religiões de matriz africana, tradicionalmente, tocar tambor sempre foi atribuído apenas aos homens.

Durante os ensaios do espetáculo, houve outra situação, documentada em um vídeo viral nas redes sociais, em que um amo do boi vermelho se referiu ao boi preto com uma expressão que soou como uma piada preconceituosa. Isso se espalhou entre os torcedores, que brincam um com o outro sem perceber que estão perpetuando a homofobia.

Falando agora sobre os saberes dos povos ancestrais, em um texto que explica o tema da primeira noite do boi preto, encontramos a expressão “Epistemologia Cabocla”, ou seja, o conhecimento dos povos ribeirinhos e afro-indígenas.

Atualmente, vemos um movimento nas universidades que valoriza outras formas de produção de conhecimento, como as ciências e as experiências das comunidades tradicionais brasileiras, caminhando para a ação de integrar esses saberes no currículo escolar da educação básica, buscando perspectivas decoloniais e contra-coloniais.

O festival, através da arte, da música e dos saberes dos povos da floresta, dos quilombos e das periferias, transmite mensagens educativas e filosóficas. Basta permitir um olhar consciente sobre as dimensões da realidade por trás das cortinas do espetáculo.

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