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Exame Nacional do Ensino Colonial

Exame Nacional do Ensino Colonial

Foto: Gabriel Jabur/Agência Brasília.

Hoje fui fazer a segunda prova do ENEM 2023, de Matemática e Ciências da Natureza. Nessa área fiz graduação (em Biologia) e Mestrado, pois meu doutorado é nas Humanas. Transitei por essas áreas por décadas e 36 anos depois de prestar vestibular, em 1987, para o curso de Licenciatura em Ciências Biológicas na UFAM, resolvi prestar novamente o exame de ingresso à universidade.

Os atuais exames de ingresso, obviamente, são melhores do que os do tempo em que prestei, mais bem elaborados, com questões contextualizadas, temas atuais, bancos de questões e com mais acúmulo em relação aos exames internacionais. E é por aí que começo a discutir o formato do ENEM, já que por “internacional”, os especialistas costumam compreender a Europa e os EUA.

Dessa forma, o ENEM, enquanto uma avaliação pautada em conhecimentos supostamente universais, é outra maneira da Europa e dos EUA nos empurrarem suas verdades, seus conhecimentos, sua visão de mundo. Por trás destes conhecimentos “universais” está o desprezo a cosmovisão de muitos povos que continuam silenciados e que tem seu ingresso à universidade dificultado porque estão sendo pautados por modos hegemônicos de fazer e pensar.

Assim, por trás das questões de Química, há uma química colonial, por trás das questões de Física, há uma física colonial, por trás da Filosofia se esconde a Grécia Antiga, a filosofia alemã, por trás da Biologia, está o evolucionismo darwiniano. Como resultado, temos índices de aprovação bem maiores entre egressos de escolas de gente branca, rica e que teve mais acesso a essa cultura do que aqueles que, na infância falavam uma língua indígena, que moravam em quilombos ou no campo, exercendo importantes atividades socioculturais cujo conteúdo não cai no ENEM.

O ENEM pode, acertadamente, criticar o descalabro provocado pelo agronegócio, mas nem assim é capaz de pautar, de forma robusta, conteúdos como as práticas agrícolas tradicionais, colocar a letra de um carimbó, de uma catira, elementos das danças tradicionais, o tacacá, a tainha, o pirarucu, elementos regionais das falas, as novelas brasileiras, o funk carioca, a cultura hip hop que, quando estão presentes, são marginais, secundarizados.

Como já disse, não sou um candidato qualquer, pois já conclui graduação, mestrado e doutorado, leciono numa universidade, minha cultura é acadêmica. Além disso, sou morador da periferia de Manaus, sou pandeirista em roda de samba, fiz capoeira, sou filho de trabalhadores e, atualmente, sou professor de estágio supervisionado, o que me coloca em contato com os atuais estudantes do ensino médio. Sou também um pesquisador do ENEM e, em 2013, junto com os pesquisadores Carolina dos Santos Fernandes, Eduardo Antônio Zampiron, Fábio Peres Gonçalves, Carlos Alberto Marques e Demétrio Delizoicov publicou um artigo na revista Química Nova na Escola sobre este exame.

Por isso, digo uma coisa sem medo de errar, o atual ENEM não foi feito para o povo brasileiro. Não fui nada mal nas provas, mas estou certo de que muita gente foi, muitos amigos meus, gente inteligente, que estudou e se preparou.

O ENEM não tem a cara das tantas culturas, conhecimentos, práticas, línguas, artes que produz o povo brasileiro, mais do que muitos países europeus. O ENEM continua branco e europeu, continua a ser um filtro para excluir aqueles que vem de culturas afro-brasileiras e indígenas, é uma prova para eurobrasileiros e pra gente urbana desse país.

Torço para que, um dia, o ENEM possa ser uma prova decolonial e selecionar o mestre de bateria, o compositor popular, a tacacazeira da esquina, o capoeirista, a cantora de forró, a Mãe-de-Santo, a benzedeira e o pescador. Quero que, na universidade, eles também aprendam sobre a Grécia Antiga, sobre Darwin, Newton, Imunologia e Álgebra, mas para isso, o portão de entrada na universidade precisa ter letreiros que digam, em letras garrafais:

“Bem vindo à universidade, povo brasileiro!”

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