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Quando se fala em mudanças climáticas e aquecimento global, o discurso costuma ser técnico, como se fosse neutro. Mas por trás de relatórios e projeções existe uma realidade profundamente desigual: o racismo ambiental. Embora seja um termo acadêmico, descreve algo que o Brasil conhece de perto: os impactos desiguais das catástrofes climáticas recaem com mais intensidade sobre negros, indígenas e comunidades tradicionais em situação de vulnerabilidade.
O racismo ambiental não é apenas um conceito teórico; ele se traduz em práticas concretas de exclusão. Ele se manifesta em três dimensões centrais — racial, de gênero e social, marcada pela aporofobia, o preconceito contra os pobres (Inesc, 2024) — e se reflete na forma como diferentes grupos acessam — ou são privados de acessar — condições básicas de vida, como saneamento, saúde, segurança alimentar e relação com seus territórios (Goes; Nascimento, 2013). Ou seja, o aquecimento global é universal, mas seus impactos têm cor, classe e endereço.
Essa lógica desigual se materializa de forma dramática na Amazônia. Povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas convivem com rios contaminados por mercúrio, perda de territórios para o agronegócio e destruição de florestas. Eles são expulsos de suas terras, privados de saneamento básico e obrigados a conviver com água envenenada, enquanto desastres em bairros nobres recebem atenção imediata. Como alerta Krenak (2019), enquanto a natureza for tratada como mercadoria, continuaremos a reproduzir a mesma lógica destrutiva que ameaça a floresta e a humanidade.
Em outras palavras, o resultado é perverso. Os desastres ambientais que atingem comunidades pobres raramente recebem a mesma atenção que tragédias em centros urbanos. Enchentes que destroem casas ribeirinhas, secas que comprometem a pesca ou fumaça que adoece populações amazônicas não são simples fenômenos naturais — são consequências de escolhas políticas. Como lembra Carneiro (2011), o racismo se reinventa em diferentes esferas, e o ambiental é um dos seus rostos mais invisíveis.
Não se trata apenas de conter emissões ou assinar acordos internacionais. A Amazônia não é apenas “reserva de carbono”; é território de vida para milhões de pessoas. Qualquer projeto que ignore isso repete, de forma sofisticada, a lógica colonial e racista que sempre marcou a exploração da região.
A Amazônia não é um ativo financeiro ou um serviço ecológico à espera de ser precificado. Reduzi-la a uma “reserva de carbono” é uma perigosa abstração que desumaniza e, essencialmente, perpetua o racismo ambiental. Não se trata de negar a urgência da crise climática, mas de confrontar a falsa neutralidade que permeia as soluções propostas.
Reduzir a Amazônia a uma “reserva de carbono” é um ato de desterritorialização e desumanização. Essa visão, embora travestida de preocupação ecológica global, repete o roteiro exploratório colonial: valoriza o recurso (o carbono estocado na biomassa) e desvaloriza a vida humana e os modos de existência que, de fato, garantem a preservação desse recurso. Ao concentrar o debate em métricas e cifras financeiras (créditos de carbono, compensações), a lógica global desvia o olhar dos verdadeiros custos da destruição, que recaem desproporcionalmente sobre os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais.
O Racismo Ambiental manifesta-se precisamente na forma como esses grupos, que são os guardiões históricos e mais eficazes da floresta, são sistematicamente alijados das decisões, têm seus territórios invadidos e sofrem a violência do desmatamento e do garimpo. Enquanto as grandes corporações e países desenvolvidos negociam metas e fundos, as comunidades na linha de frente enfrentam a contaminação por mercúrio, a perda de sua soberania alimentar e o assassinato de seus líderes. Essa é a distribuição desigual dos ônus e bônus ambientais: o mundo busca usufruir do alívio climático que a floresta em pé proporciona, enquanto os povos que a mantêm pagam com seu sangue, sua saúde e sua cultura.
A luta pela Amazônia, é, acima de tudo, uma luta antirracista. O verdadeiro e duradouro “projeto de desenvolvimento” para a região deve devolver a centralidade aos povos da floresta, garantindo a demarcação de seus territórios, o financiamento de suas bioeconomias e o reconhecimento de seus protocolos de gestão territorial.
Somente quando a vida humana e as culturas que dependem da floresta forem o valor supremo, e não o carbono, poderemos superar a lógica colonial e racista que nos trouxe a essa crise. O futuro da Amazônia está na descolonização do olhar e do capital.
O desafio, portanto, é colocar a justiça ambiental no centro das decisões, como princípio inegociável. Ignorar o racismo ambiental significa condenar povos inteiros a carregar, sobre corpos e territórios, o peso das mudanças climáticas. A luta pelo clima é, antes de tudo, uma luta por dignidade, igualdade e vidas que não podem mais ser descartadas.
Sem justiça ambiental, não haverá futuro.
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