
Foto: Ailane Brito
Na última terça-feira, 10 de junho, aconteceu a cerimônia de lançamento do edital do Processo Seletivo Especial PRONERA/UFOPA, na sede da Colônia de Pescadores e Pescadoras Z19. O evento contou com a presença de diversas lideranças comunitárias e representantes institucionais. Estiveram presentes: José Maria Melo (superintendente do INCRA), Lilian Braga (Promotora de Justiça do MPPA), Solange Helena Ximenes Rocha (vice-reitora da UFOPA), além de lideranças e representantes de movimentos sociais do campo e de outros órgãos.
Mas o que está por trás desse edital? Por que essa iniciativa é tão relevante para nossa região? E, sobretudo, o que esperamos dela?
O PRONERA — Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária — é uma política pública criada para democratizar o acesso à educação formal para trabalhadoras e trabalhadores do campo, especialmente aqueles vinculados à luta pela terra. Sua proposta vai além de garantir vagas em universidades: ele busca respeitar os modos de vida e saberes das populações rurais, construindo uma formação enraizada no território.
Com a chegada do PRONERA a Óbidos, em parceria com a Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), abre-se uma oportunidade inédita para que assentados, ribeirinhos, quilombolas, pescadores e juventudes do interior possam acessar o ensino superior sem precisar abandonar suas raízes ou descontextualizar seus saberes. Esse evento representa mais do que uma nova oferta acadêmica. Trata-se de um avanço histórico para a justiça social no campo da educação.
A pedagogia que nasce da terra
A escolha de Licenciatura em Pedagogia como curso inicial é simbólica e estratégica, como bem mencionou a Promotora de Justiça Lilia Braga. Durante o seu discurso também revelou que, inicialmente, não considerava o curso de Pedagogia como prioridade para o programa. No entanto, mudou de perspectiva ao ouvir o desabafo de um pai de aluno que disse não querer mais que seu filho aprendesse que “Pedro viu a uva”. Tocada pela fala, a promotora compreendeu, de forma profunda, a importância de uma formação docente comprometida com os saberes e contextos locais. Segundo ela, é preciso ensinar que Pedro viu a macaxeira, o cacau, a banana — elementos que dialoguem com as realidades locais.
A vice-reitora Solange Rocha, em sua fala, enfatizou que o curso ofertado pelo programa não se trata de qualquer pedagogia. Trata-se de uma pedagogia do campo: crítica, libertadora, voltada à transformação social e ao reconhecimento dos sujeitos que historicamente foram invisibilizados pelas políticas educacionais tradicionais.
A Voz de quem vive o território: Douglas Sena e as críticas ao Edital
Logo na abertura da cerimônia, a primeira fala da mesa ficou a cargo de Douglas Sena, liderança quilombola, que fez observações incisivas sobre o edital. Sua intervenção foi uma das mais contundentes da manhã e cumpriu o papel essencial de provocar reflexão e correção de rumos desde o início.
Douglas questionou, com razão, o dia escolhido para o lançamento: uma terça-feira, quando grande parte da população rural está em suas comunidades, distante da sede do município. Reforçou que segundas e sextas-feiras são dias tradicionalmente mais acessíveis, por causa do fluxo de vinda e ida do povo do campo à cidade.
Mas sua crítica não se limitou à logística do evento. Douglas trouxe reflexões importantes sobre o cronograma de inscrições, a divulgação, ainda insuficiente nas áreas rurais, e a necessidade de garantir que o processo não seja excludente para aqueles que mais precisam da política pública. Suas falas foram um alerta — e um apelo — para que o PRONERA não se torne apenas mais uma ação distante da realidade concreta das comunidades.
Desafios e contextos: por que demorou tanto?
Durante a organização do evento tive a oportunidade de conversar com as coordenadoras do PRONERA/UFOPA: a Profa. Doutora em Educação Clenya Vasconcelos, que atua no campus Santarém, e a Profa. Mestra em Educação Karolina Amarante, que atua no Campus Óbidos.
De acordo com a professora Karol: “A implementação do curso de Pedagogia pelo PRONERA responde aos anseios da sociedade, por meio das lideranças políticas e movimentos sociais, em defesa da materialização do artigo 205 da Constituição Federal, na garantia de direito à educação para todas as pessoas. Em especial, as famílias de áreas de assentamentos da reforma agrária e território quilombola, que travam históricas lutas e pressões ao estado na efetivação desse direito…”
Quando questionei sobre os obstáculos enfrentados para tornar o curso uma realidade em Óbidos. A professora Clenya destacou um ponto central: o financiamento.
“Os principais desafios foram de ordem financeira, pois o programa é fomentado externamente pelo Incra. Com a mudança do governo federal houve a liberação de mais recursos para projetos dessa natureza.”
Esse trecho revela o quanto as políticas públicas de educação para o campo ainda são dependentes da vontade política e do orçamento federal. Como ressaltou o superintendente do INCRA durante seu discurso no evento: “O PRONERA vai fazer 27 anos de existência em 2025, mas com a mudança de governo durante esse tempo muitos recursos foram cortados… Aretomada do PRONERA com novo fôlego só foi possível com o reposicionamento político do governo federal.” (José Maria Melo)
Essas falas se cruzam ao transparecer a educação do campo, infelizmente, como um direito que ainda não é garantido em sua plenitude, mas sim uma conquista em constante disputa.
Ao questionar de que forma os movimentos sociais têm participado da construção e execução do curso, a professora Karol relatou o seguinte:
“Temos a articulação com os movimentos sociais por meio da Arquimob, Casa familiar Rural, entre outras e temos o desafio de buscar estreitar essa relação para a efetividade do curso e sua proposta por meio da Pedagogia da alternância.”
*Alternância: quando a universidade caminha até a comunidade
Outro ponto alto foi quando perguntei sobre a metodologia do curso. As professoras explicaram que o diferencial está na pedagogia da alternância, um modelo que busca integrar o saber acadêmico com o saber comunitário. Acompanhe a explicação:
“O curso funciona pela pedagogia da alternância: um tempo na universidade, outro na comunidade dos estudantes. Se um componente curricular tem 60 horas, 42 horas acontecem na universidade e as demais 18 horas na comunidade. A cada semestre ofertamos cerca de sete componentes, o que corresponde, em média, a 1 mês e 15 dias de aulas integrais (manhã e tarde) na UFOPA e o restante da carga horária nas comunidades, sempre acompanhadas pelos professores. Além disso, os alunos recebem uma bolsa de R$ 600,00 para custear seus estudos até o final do curso.” (Dra. Clenya Vasconcelos)
“A proposta teorico-metodologica da pedagogia da Alternância deve fundamentar o projeto político pedagógico do curso uma vez que orienta a favorece a organização curricular com as políticas educacionais para os sujeitos da reforma agrária, que são campesinos, ribeirinhos, quilombolas, pescadores, integrando teoria e prática por meio da apropriação do conhecimento e formação na Universidade e comunidade, com base nos conhecimento produzidos e os saberes próprios de suas comunidades.” (Mestra Karolina Amarante)
Esse modelo é revolucionário porque rompe com a lógica tradicional da educação que exige a migração permanente para o centro urbano. Ao respeitar o tempo da comunidade, o curso propõe uma nova geografia do conhecimento, em que a sala de aula pode ser uma casa, um roçado, uma beira de rio — e o professor, alguém que aprende tanto quanto ensina.
Convite à ação: a educação que respeita sua realidade
O que dizer àqueles que ainda hesitam em se inscrever?
De acordo com a Dra. Clenya: “O curso de Pedagogia da UFOPA/PRONERA é a educação que respeita sua realidade!”
Já a Mestra Karol fez uma chamada: “Que reflitam sobre a importância da oferta desse curso para sua comunidade e o quanto a formação em Pedagogia pode contribuir com a melhoria do ensino e aprendizagem, tanto no âmbito escolar e não escolar. Assim como no papel que o Pedagogo exerce frente às políticas públicas, por meio de uma formação superior pública, de qualidade, socialmente referenciada e contextualizada com a realidade amazônica.
Essa reflexão ecoa como um convite à coragem e ao pertencimento. Não se trata apenas de cursar uma faculdade, mas de fazer parte de um movimento que compreende o campo como lugar de saber e potência.
Por que isso importa?
O lançamento deste curso em Óbidos não é apenas uma vitória local — é um sinal de que outra universidade é possível. Uma universidade que não apenas ensina, mas que aprende com o território. Que não apenas certifica, mas emancipa. Que não apenas acolhe, mas caminha junto.
Esperamos que essa experiência seja sustentada com políticas públicas contínuas, com o envolvimento das comunidades, dos movimentos sociais e da sociedade civil organizada. Mais do que formar professores, o PRONERA pode formar lideranças, pensadores do território, educadores populares.
Como alguém que participou da organização desse momento e acompanha há anos a mobilização das comunidades rurais, quilombolas, ribeirinhas e assentadas da região, me coloco desde já como observadora crítica do processo. Estarei acompanhando de perto sua implementação para verificar se, com o tempo, esse programa realmente se consolida como uma ferramenta de emancipação social e não apenas como uma ação pontual.
Um convite à mobilização
Agora, o desafio é mobilizar os sujeitos do campo para que ocupem esse espaço. Que as lideranças falem que as escolas do interior se envolvam. Que ninguém fique de fora porque não soube, não entendeu ou não acreditou que era possível.
Afinal, quando o campo chega à universidade, não é apenas o indivíduo que entra pela porta: entra com ele a memória dos seus, a história do seu povo e a força de quem nunca desistiu de aprender e resistir.
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