
Foto: Arquivo pessoal
Na mais recente edição do Diálogos do Norte, o coordenador da ARQMOB, Douglas Sena, compartilha sua trajetória e experiências no movimento quilombola. Nascido no quilombo Arapucu, no município de Óbidos, Douglas está há quase três anos à frente da instituição, articulando comunidades e territórios em defesa de direitos fundamentais. Sua atuação também se estende ao Baixo Amazonas, onde integra a coordenação regional da Malungu, em conexão com as instâncias estadual e nacional.
A entrevista aborda o fortalecimento do movimento quilombola, os desafios da juventude que acessa a universidade, a importância das políticas públicas, a relação com o Estado e o papel da espiritualidade nas comunidades. Ao longo da conversa, Douglas também destaca projetos, sonhos e mensagens de continuidade da luta coletiva, fundamentais para o presente e o futuro dos quilombolas. Acompanhe, a seguir, a entrevista na íntegra.
Hoje entrevistamos Douglas Sena, coordenador da ARQMOB, a quem agradecemos por aceitar nosso convite. Para começar, quem é o Douglas Sena?
Obrigado pela oportunidade de conversar e dialogar. Eu sou o Douglas Sena, quilombola do quilombo Arapucu, no município de Óbidos. Sou coordenador administrativo da ARQMOB e estou à frente da instituição há quase três anos, desenvolvendo o trabalho de articulação das comunidades, territórios e associações quilombolas do município. No Baixo Amazonas, faço parte da coordenação regional da Malungu, ligada à coordenação estadual e, consequentemente, à coordenação nacional quilombola.
Como começou sua trajetória no movimento quilombola e em que o processo de luta na região difere de outros contextos?
Se há um ano para marcar esse início, seria 2009. Hoje já são 16 ou 17 anos de caminhada. Minha formação começou com a Comissão Pró-Índio de São Paulo, que, na época, convidou a juventude para participar de uma oficina chamada Caminhos da Titulação, destinada a ensinar o processo de titulação dos territórios quilombolas.
Foi uma oficina didática, com atividades ilustrativas para que entendêssemos a dinâmica da titulação. De lá para cá, participei de encontros, reuniões, conferências. Esse aprendizado nos aproximou da defesa das políticas públicas e dos ideais do movimento, dando-nos visibilidade e chamando-nos para enfrentar desafios — não físicos, mas de diálogo. Isso nos fez crescer e também atrair outras pessoas para a luta.
Fortalecemos o movimento junto com os mais velhos que iniciaram a organização nos anos 1980, em Óbidos, Oriximiná e Alenquer, como no Pacoval, por volta de 1986. Graças a eles, temos hoje uma estrutura de articulação e encaminhamento das demandas. A ARQMOB atua de forma macro, prestando uma espécie de assessoria às associações locais, que têm autonomia de decisão.
Antigamente, os movimentos sociais eram tutelados por ONGs e instituições que elaboravam projetos, captavam recursos e faziam atividades apenas para justificar os financiamentos. Muitas enriqueceram às custas do movimento, gerando vícios que combatemos até hoje. Um deles é a expectativa de pagamento de diárias para participação, colocando a militância em segundo plano.
As lideranças antigas, como Daniel de Oriximiná, Silvano, Irene, Dona Verinha, Carlito e seu Claudomiro, do Muratubinha, passavam meses fora de casa fortalecendo comunidades sem receber diárias. Iam apenas com dinheiro de passagem e comida. Isso mostra a diferença entre a militância de antes e as situações que enfrentamos hoje.
Durante a consulta do REDD+, percebi que o Estado utiliza estratégias para desconcentrar o público e esconder suas reais intenções. Como o movimento lida com isso?
Depende da situação. A Convenção 169 da OIT determina que o governo deve arcar com as despesas das consultas. Por isso, adotaram como estratégia o pagamento de diárias. Errado não está, porque muitos deixam casa, família e trabalho para participar. Houve até quem pagasse outro professor para assumir sua sala de aula.
Mas é preciso analisar a produtividade disso. A participação deve estar ligada ao interesse em construir propostas para o movimento quilombola, e não a um simples benefício financeiro. Caso contrário, compromete-se o trabalho, já que as associações não têm condições de bancar diárias. O que podem fazer é oferecer ajuda de custo em deslocamentos necessários.
É justo que as lideranças recebam de acordo com o que desenvolvem, mas ainda carecemos de uma prática administrativa sólida. Muitas instituições, no passado, fizeram tudo pelas associações, sem preparar suas bases para a autonomia.
Quando assumimos a ARQMOB, em 2022, encontramos associações que não sabiam sequer redigir um ofício, pois não haviam sido orientadas. Os seis primeiros meses foram muito complicados: todas as demandas das comunidades chegaram à diretoria, e atendíamos quilombolas manhã, tarde e noite.
Criamos, então, a Mesa Quilombola de Ofício, encontros mensais de formação. Após seis meses, a carga de trabalho começou a se distribuir, e as lideranças locais passaram a resolver problemas. Os casos mais complexos são levados à diretoria, enquanto os menores ficam nas comunidades. Hoje, as associações conseguem fazer encaminhamentos, pedem orientação apenas quando necessário, e nós oferecemos suporte.
Muitos quilombolas recebem apoio para bolsas e estudos, mas depois não retornam às comunidades. Como você avalia essa ausência e o que pode ser feito para estimular a contribuição?
Essa ausência é reflexo da falta de formação de base. As associações não fizeram esse trabalho. Precisamos elogiar quando está certo, mas também corrigir quando está errado.
Segundo levantamento da Ufopa, mais de 200 quilombolas estudam ou já se formaram. São 19 comunidades: em média, mais de dez por comunidade. No entanto, muitos não retornam para contribuir. Alguns acreditam que o serviço prestado deve ser pago. Temos advogados que entraram pelo processo seletivo quilombola, mas que só atendem se houver pagamento. Não é errado cobrar, mas usufruíram de políticas públicas conquistadas pelo movimento.
O mínimo seria ajudar periodicamente: orientar associações, oferecer encaminhamentos, prestar assessoria. Caso não queiram voluntariamente, podem buscar projetos de assessoria jurídica ou técnica. Nenhuma associação negaria apoio nesse formato.
Mas é preciso iniciativa dos dois lados. Às vezes, falta abertura nas coordenações, que se fecham e não permitem entrada de novos apoiadores. Precisamos criar dinâmicas em que a coordenação mantenha sua autonomia, mas permita que profissionais com formação técnica ajudem.
Temos lideranças ótimas no diálogo, mas sem formação acadêmica. Aprenderam na marra. Já os que têm formação técnica deveriam se aliar a elas, para somar forças.
Muitos quilombolas que saem das comunidades enfrentam dificuldades para retornar e participar. Como o movimento pode fortalecer esse sentimento de pertencimento?
Isso acontece muito. Às vezes, dizem: “Fulano fez faculdade e agora quer ensinar a gente.” Em alguns casos é injusto, em outros não. Já vimos exemplos dos dois lados.
O que recomendo é: primeiro se aproximar da comunidade, dialogar, compreender como as coisas funcionam. Não adianta querer chegar impondo ensino. Existe uma construção de base. A oportunidade é dada, mas depende da voluntariedade.
Cada um entende o movimento de forma diferente. Quem vem da academia costuma querer resultados rápidos, mas no movimento as coisas são lentas. As políticas públicas só chegam com luta, e a luta, muitas vezes, é criminalizada. Isso reforça o racismo estrutural, que ainda enfrentamos.
Por isso, precisamos reafirmar nossa identidade o tempo todo. Se a autodeclaração não é bem trabalhada na base, quem passa alguns meses fora volta se sentindo um peixe fora d’água. Ainda há quem ache que quilombola é só quem é preto, mas os laudos antropológicos mostram que quilombola é quem tem ancestralidade, não cor de pele.
Além da liderança na ARQMOB, em que outras áreas você atua no dia a dia?
Sou vice-coordenador da associação da minha comunidade, presidida por Redinaldo. Moro na cidade, mas nos fins de semana estou na comunidade para reuniões e eventos.
Atualmente exerço função técnica na SEMED, próxima da coordenação da Educação Escolar Quilombola e da Educação Antirracista. Estamos construindo uma proposta de trabalho nesse sentido. Não basta haver lei: é preciso construir caminhos para aplicá-la.
Nossa coordenadora tem criado dinâmicas de diálogo, e nosso papel é fortalecer tecnicamente sem deixar de lado as agendas do movimento. Essas agendas, inclusive, fortalecem o trabalho técnico.
No dia a dia, sou aberto ao diálogo, converso até com quem tenta nos prejudicar. Represento uma instituição, não apenas a mim mesmo.
Minha vida também é marcada pela espiritualidade. Tenho minha concepção religiosa de matriz africana, da religião Tambor de Mina. Tenho minha casa de Axé, ligada ao terreiro do meu pai de santo, onde atendo espiritualmente. Exerço isso com naturalidade, em paz com minha opção.
Minha família tem berço católico: fomos batizados, crismados e casados na Igreja. Não abandonamos o catolicismo, base das comunidades, mas em certo momento precisei buscar outra orientação espiritual. Hoje faço parte do coletivo nacional que trabalha os povos de terreiro nas comunidades quilombolas. Já realizamos até um evento nacional nesse campo.
A espiritualidade tradicional – curadores, rezadores, parteiras – sempre foi forte nas comunidades. Não podemos invisibilizar isso, nem permitir que vire alvo de preconceito. Sempre dizemos: numa casa de Axé se entra pelo amor ou pela dor – melhor pelo amor.
Esse é meu cotidiano: trabalho técnico, atendimento diário a quilombolas de todo o Baixo Amazonas, além das agendas do movimento.
Entre tantos, qual é o principal sonho que você destacaria hoje?
Ter um local próprio para atendimento. Muitas pessoas passam necessidade, até de moradia, e acabam em casas de outros. Se tivéssemos um espaço da associação para acolher, dormir, tomar banho, resolveríamos muita coisa. Esse é um sonho antigo de todas as diretorias, mas hoje estamos próximos de realizá-lo. Não vivemos ansiedade: estamos construindo passo a passo, buscando articulações e parcerias para concretizá-lo da melhor forma.
Que mensagem você gostaria de deixar para os quilombolas?
A mensagem é de continuidade na luta, com resiliência. Assistimos ao assassinato de lideranças, como o de Mãe Bernadete, que impactou profundamente o movimento. Foi resultado da omissão e incompetência do Estado, que não titulou o território nem retirou invasores.
Nosso interesse é coletivo, e isso se choca com o individualismo do agronegócio e de grandes empresários. Precisamos estar cada vez mais articulados, unidos e fortalecidos. Embora vivamos em comunidades e associações diferentes, o objetivo é o mesmo.
O fortalecimento da luta quilombola é a articulação dos territórios e a garantia de que políticas públicas cheguem até nós, melhorando a vida de todos.
As reflexões de Douglas Sena revelam os dilemas e conquistas do movimento quilombola, apontando para a necessidade de articulação constante e autonomia das associações. O fortalecimento institucional e a formação de base aparecem como pontos-chave para a continuidade da luta, assim como o diálogo com o Estado e a resistência diante das desigualdades estruturais.
Sua fala também evidencia a pluralidade de dimensões que compõem a vida quilombola – da educação à espiritualidade – e reforça que a preservação da identidade e a busca por políticas públicas eficazes são centrais para o futuro das comunidades.
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