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Colunista

Marcos Souza

Três livros distintos para três fatos tristes: um olhar às obras de Victor Leandro

Algumas considerações acerca das leituras de Catedral dos Mortos (2023), Degredo (2024) e Rio das Cinzas (2025)

Três livros distintos para três fatos tristes: um olhar às obras de Victor Leandro

Victor Leandro. Foto: Arquivo pessoal.

Manaus, uma palavra simbólica e chiada. O que caralhos é Manaus mesmo? Manaus? Certamente há uma variação na definição a depender de quem, onde, quando e como fala. Haverá quem considere um “ciúme”, um lugar rico, um lugar pobre, um não-lugar, um céu de incentivos, um inferno em terra… Nenhuma definição conseguiu ser mais autêntica que a de Márcio Souza, trata-se de um prefácio do seu próprio livro de contos Caligrafia de Deus, intitulado “Manaus século XXI”. Ele arremata: “Cidade mal-amada. Cidade acostumada a apanhar na cara, a ser violentada, a ser roubada vergonhosamente pelos seus amantes”. Uma honesta síntese do que Manaus foi e está. Essa violentada Manaus, desnudada de modo visceral por Márcio Souza, por supuesto é essencialmente idêntica a Manaus fidelizada nas obras de Victor Leandro.

A Manaus de Victor é o palco dos miseráveis e da miséria implacável do mundo, nela vemos desgraças que assustam até os mais extravagantes ficcionistas, capaz de deixar um George Orwell no chinelo quando mostramos a história de um povo subordinado, ou estarrecer um Machado de Assis com o despudor canalha de nossas elites estupidificadas. Por outro lado, as obras do autor, ao se alicerçarem na versão não romantizada e lúcida de Manaus, são valiosos retratos de momentos muito simbólicos à cidade e ao país no primeiro quarto deste incerto século, podendo ser futuramente estudadas por aqueles que se comprometerão a não fazer o que os malditos cleptocratas querem: que tudo caia no esquecimento.

Vamos aos fatos tristes: em Catedral dos Mortos temos como fato triste central a pandemia de Covid-19, a crise de oxigênio e o experimento negacionista perpetrado por governantes perversos, corruptos, omissos e, como eles próprios se denominam, cristãos. Catedral toca em um acontecimento recente e ainda traumático para muita gente, embora outros muitos tenham ignorado a violência causada aos manauaras e, por canalhice ou ignorância, teimam em cultuar os responsáveis pelo massacre dos nossos. Como está registrado em um diálogo nas primeiras páginas do livro, em uma festa clandestina de figurões da cidade em meio à pandemia: “eles querem festejar entre eles, e se acham no direito, mesmo com o povo caindo pela rua”.

Já em Degredo, acompanhamos a trajetória de um poeta venezuelano fugido da crise política instaurada em sua pátria, vindo parar na marginalidade selvagem, desconfiada e decadente de Manaus. Rike, o poeta e protagonista, além de um crítico às impressões midiáticas estadunidense e brasileira empurradas goela abaixo sobre o direcionamento político de Maduro e as causas da crise venezuelana, esboça a percepção de um imigrante tentando se encontrar em nossa perdida cidade. O próprio Márcio Souza deixou claro o tratamento dos estrangeiros no mesmo prefácio supracitado: “engana os que chegam de muito mais longe, carregados de misérias e esperanças. Mas é conveniente com os oportunistas, com os canalhas”.

Para dar coesão à assimilação erigida entre Victor e Márcio, nada mais justo que relacionar as citações entre si, agora com o próprio andarilho poético de Degredo: “E seguiu agora andando pela beira do rio pela orla do porto sentindo o odor fétido que o satisfez por perceber que a cidade era suja e fedorenta cheia de pobreza e abandono como qualquer outro lugar de qualquer outro país do nosso continente que não eram melhores que não tinham boa vida somente uns ricos que são iguais ao outros de alguns lugares do meu país ou da Argentina ou do Uruguai ou do Peru que os ricos são idênticos têm sempre a mesma cara o mesmo nojo pelos pobres e o mesmíssimo desejo de açoitar…”.

Rio das Cinzas nos traz a figura de Estevam, um manauara radicado em outra cidade como servidor público que volta a Manaus e deixa suas impressões sobre a cidade coberta de fumaça e sobre os mecanismos opressivos da região, mas, antes de quaisquer repulsas, vindo com o objetivo de resgatar familiares de garimpeiros encurralados em uma área inóspita pela floresta, pela fauna e pelo rio completamente seco. As relações entre os encurralados, a população ressentida do município próximo à área, as autoridades locais e federais e o poderio do crime organizado são pontos (e fatos) indispensáveis para escancarar a verdadeira face da Amazônia e do Amazonas enquanto espaço de interesses políticos regionais e internacionais, não sem esquecer o principal: os viventes da terra que sempre pedem socorro, apesar de nunca serem resgatados descaso a que são subjugados.

Aliás, devemos dar dois dedos de prosa à estética narrativa de Victor Leandro, pois ela é facilmente comparável a uma maratona onde ele num ato de malandragem coloca uns calhamaços na pista para que os atletas tropecem em alta velocidade fazendo-os cair-correr e correr-cair mas continuando aos trancos e barrancos atabalhoados como bebum sem apoio pontos vírgulas e amenidades e assim flui a leitura das obras referidas de modo que ou caímos de cara e retrocedemos para tropeçarmos de novo ou seguimos meio sem querer querendo e quando se vê tã-dã ou onomatopeia que o valha concluímos a leitura com a sensação de termos conversado com aquele amigo ansioso e prolixo a contar mais uma das suas inflamáveis histórias.

Resta a nós, leitores, a releitura e o monólogo com o pedaço do papel; a nós, manauaras-brasileiros, estarmos conscientes dos nossos algozes e de sua necessária decapitação política; a nós, latino-americanos, abrir os olhos para os filhos… os filhos daqueles que sempre estiveram com o chicote na mão. E a derradeira definição do que é Manaus? Manaus… Manaus está aí, está aí e a suposta tendência é findar como conceito utópico, causos ridículos e exploração crônica. Estevam, sem dúvidas, pontuaria se tratar de “um lugar nascido e crescido e criado no fisiologismo tacanho, pobre e estrangeiro”. Maldita Manaus, cidade mal-amada…

As obras de Victor Leandro podem ser encontradas entrando em contato com o escritor pela sua rede social ou indo à livraria Temiporã.

 

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