
Foto: Marcos Souza
Após ler A Lança de Anhangá e voltear suas folhas em recordações de um trecho ou um arremate, é praticamente impossível não vislumbrar com empolgação a figura central, mas não totalizante da obra, do próprio Anhangá. Os contos são bastante visuais, sim, há um suspense nas arestas de cada parágrafo, sim, podemos mesmo imaginar os contornos de um filme à meia-luz, cuja humanidade indaga por progresso e a natureza responde com vingança. Aliás, os heróis e forças sobrenaturais que o mundo ocidental, através das artes visuais e da literatura, tradicionalmente propusera e propõe são essencialmente urbanos (modificados), ou, senão, vêm de outra dimensão, outra galáxia, o que significa dizer que, para se combater o “mal”, precisamos de um antagonista excepcional, um herói que irá destruir o vilão e preservar sua honra e seu legado, ainda que isto custe derrubar quarenta prédios apinhados de trabalhadores.
Os sete contos presentes em A Lança de Anhangá estão situados em recortes hipotéticos que, por serem reorganizadas histórica e politicamente, nos deixa munidos de interrogações sobre o que seriade nós se lá atrás, no momento em que o primeiro europeu pisou neste continente, houvesse ocorrido uma frustração na opressão e no processo de colonização dos povos originários. O repertório de estudos sobre causa e efeito de um evento passado é vasto e maleável a depender das nossas ideologias, é evidente, o que não impede de cairmos de cabeça em um universo particular, rubro e, felizmente, nosso, como é a pintura em letras de Ricardo Kaate Lima.
Em O Prelúdio da Escuridão, o leitor é inserido no tom apreensivo e gutural do livro, ficando a par de seu ritmo de narração, do protagonista Benício e do imperdoável e justiceiro Anhangá; neste conto temos uma Manaus entremeada de novas tecnologias e um regime totalitário, mal comparando: um regime à la 1984, de George Orwell, acrescido ao modo Cyberpunk, ou seja,uma sociedade altamente tecnológica e extremamente segregada socialmente. Isto é, tudo acrescido em uma Manaus que se reconhece única e surpreendentemente pela majoritária presença indígena e seus fortalecidos aspectos culturais. Na malsucedida tentativa de resumir o conto, pode-se cair na urgência de uma releitura, mas, de qualquer modo, cabe ressaltar que a distopia, a cosmologia indígena e o cenário manauara oferecem um prazeroso e escaldado sumo para se sorver.
O conto seguinte, O Verde, o Cinza e o Negro apresenta um Brasil distinto em sua organização política, sendo a Amazônia um território livre, conservado e orquestrado harmoniosamente pelos povos indígenas, a República Confederada dos Povos da Amazônia, enquanto a parte ao sul, brasileira, é praticamente esgotada de recursos naturais, feita de concreto e aço, voltada ao “progresso”. O conto é ditado pelo impasse diplomático entre esses dois países, esboçando possibilidades, contradições e fatalidades. Aos Condenados do Mundo aborda a viagem interplanetária de um agente brasileiro, que se depara com uma cópia sua e com os destroços de uma civilização aparentemente extinta.
No conto Os Possessos se desenrola a trajetória traumática e apocalíptica de Bruno Miller e seus próximos, perseguidos pelos ditos possessos, por salteadores e fanáticos de um culto profano. No quinto conto, O Forasteiro, acompanhamos a história de Heitor Barbosa, um jornalista investigativo e pesquisador sedento por histórias miraculosas existentes em nossa região, mais especificamente em Paricatuba, nas suas ruínas e nos misteriosos Arautos do Culto Superior.
O Espectro das Terras Devastadas narra a história de uma criança perseguida por uma criatura mensageira das Terras Devastadas, desembocando em um desfecho intercalado de um agouro temeroso e um heroísmo infantil. O último conto, homônimo da obra, A Lança de Anhangá, retrata uma milícia incendiária perpetrando a chacina dos povos da floresta e a combustão completa destes, aniquilando também a biota e abrindo espaço para os exploradores dos recursos naturais; não contando, certamente, que iriam despertar Anhangá, o brutalista e justiceiro, ou nas palavras de Kaate: o patrono das regiões escuras.
Um adendo curioso que julgo valer a pena comentar é sobre as obras literárias que já possuem resenhas feitas nesta coluna e também as que serão feitas em um futuro próximo: todas elas não precisam atravessar o oceano ou o céu para aliar excelente literatura a problemáticas que permeiam a realidade amazônica, uma vez que temos em nossa região um universo pouco explorado, opulento e, por vezes, rejeitado. A Lança de Anhangá é um exemplo magistral dessa luta, Ricardo Kaate criou, partindo de suas referências culturais e inúmeras pesquisas, todo um universo que mistura saberes da cosmologia indígena, criticidade sociológica para especular um cenário futuristana Amazônia e sensibilidade para escolher palavras certas em uma realidade de infindáveis linhas tortas.
A Lança de Anhangá, publicado pela editora Cachalote, está disponível na Amazon em sua versão física e digital, na Livraria Nacional, na Casa Som Amazônia e no Casarão de Ideias em sua versão física ou entrando em contato com o autor em sua rede social (@ricardokaate_lima).
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