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Colunista

Ailane Brito

Do plenário ao gabinete: quem cala o povo?

É a lógica do clientelismo emocional, onde o pertencimento ao grupo político vale mais que os princípios de justiça e dignidade

Do plenário ao gabinete: quem cala o povo?

Foto: Divulgação

Precisei reescrever este artigo. Não porque me faltasse coragem ou clareza, mas porque, se publicado em sua versão original, poderia prejudicar pessoas que, direta ou indiretamente, estão tentando manter seus empregos em meio ao jogo de pressões políticas da cidade. Reescrevo, portanto, não para me calar, mas para preservar quem não tem o privilégio de falar sem medo.

Essa necessidade, por si só, já diz muito sobre o momento que vivemos em Óbidos. Quando o cuidado com as palavras deixa de ser uma escolha ética e passa a ser uma medida de proteção contra perseguições políticas, não estamos mais em uma democracia plena, mas em um ambiente de intimidação institucionalizada.

Francisco Weffort foi um renomado cientista político brasileiro que dedicou sua carreira a estudar o populismo, o Estado e a democracia burguesa no Brasil. Weffort identificou algumas características do Estado brasileiro durante esse período, como o Autoritarismo: concentração de poder no Executivo; Clientelismo: troca de favores e benefícios por apoio político; e o Corporativismo: representação de interesses de grupos específicos. Nessa lógica, cargos e favores valem mais do que a liberdade de expressão, e a crítica é vista como ameaça, não como parte do processo democrático.

Enquanto isso, a cidade assiste ao teatro do absurdo: a votação histórica na Câmara Municipal, fruto da pressão legítima do povo organizado nas ruas, foi anulada por uma decisão judicial provocada por um vereador da base do prefeito. A revogação do Código Tributário, que aumentou de forma abusiva o IPTU, havia sido uma conquista popular. Mas bastou que ela contrariasse os interesses do Executivo para que se acionasse o Judiciário, não como instituição de justiça, mas segundo o povo, como extensão do poder político.

Seria esse um exemplo do que o sociólogo Boaventura de Sousa Santos chama de “judicialização da política” quando, em vez de garantir o equilíbrio entre os poderes, o Judiciário acaba interferindo em decisões políticas tomadas com respaldo popular? Estaríamos diante de um caso em que a legalidade foi substituída pela conveniência de grupos específicos?

O preço da obediência: quando até os aliados pagam caro por silenciar

É um fenômeno curioso — e profundamente preocupante — o que acontece em muitas cidades do interior do Brasil: mesmo quando são diretamente prejudicadas pelas decisões do poder público, algumas pessoas continuam a defendê-lo com fervor quase religioso. Em Óbidos, por exemplo, os carnês de IPTU chegaram pesados. Aumentos abusivos, taxas sem diálogo, cobranças que não consideram a realidade econômica da maioria das famílias. E, ainda assim, há quem aplauda.

O mais impressionante é que não estamos falando de cidadãos distantes do centro político, mas de aliados do próprio governo municipal — pessoas ligadas ao prefeito, seus secretários, vereadores da base, servidores comissionados ou simpatizantes próximos. Mesmo quando sentem no próprio bolso o impacto de políticas injustas, permanecem fiéis. Por quê?

Hannah Arendt, em sua obra Origens do Totalitarismo, nos ajuda a compreender esse tipo de comportamento. Para ela, o medo, quando manipulado politicamente, torna-se uma poderosa ferramenta de dominação. O poder autoritário não precisa, necessariamente, de censura explícita ou violência direta, basta que as pessoas se tornem incapazes de pensar criticamente por medo de perder algo: um cargo, um favor, uma relação de influência.

Essa “obediência por medo”, como Arendt chamou, leva à naturalização do absurdo. Políticas que violam o princípio da justiça social passam a ser aceitas como “necessárias”. O aumento de impostos que penaliza até os mais fiéis vira “um mal menor”. E o silêncio diante das injustiças é transformado em “lealdade partidária”.

Pierre Bourdieu, outro pensador essencial, fala sobre a reprodução simbólica do poder. Ele explica que, muitas vezes, as pessoas internalizam as estruturas de dominação como se fossem naturais ou inquestionáveis. Assim, o cidadão que deveria protestar contra um IPTU abusivo, não só se cala como defende quem o prejudica.

É como se houvesse um pacto silencioso: “fico do seu lado, mesmo que isso me machuque, desde que eu continue tendo alguma vantagem futura, mesmo que ilusória.” É a lógica do clientelismo emocional, onde o pertencimento ao grupo político vale mais que os princípios de justiça e dignidade.

Mas esse tipo de relação política é profundamente nocivo. Ela cria uma sociedade anestesiada, onde o medo de represália supera a coragem de denunciar. Onde a fidelidade é medida pela capacidade de ignorar a dor própria e a dos outros. Onde o que deveria ser escutado — o povo — vira ruído incômodo nos ouvidos do poder.

O mais trágico é que esses aliados também estão pagando a conta. Estão recebendo carnês com valores absurdos, tendo sua dignidade violada pela mesma estrutura que aplaudem. A obediência cega não os protege da injustiça, apenas os transforma em cúmplices dela.

E é preciso dizer: fidelidade política não pode ser confundida com submissão. Apoiar uma gestão não deveria significar aplaudir tudo, especialmente quando o que está em jogo é a sobrevivência econômica e a justiça fiscal de uma cidade inteira. Quem se cala diante do próprio sofrimento por medo de desagradar o poder comete uma violência contra si mesmo e contra a democracia.

A verdade resiste, mesmo sob cortes

Em tempos difíceis, em que a liberdade de expressão parece ameaçada por interesses locais e o medo se espalha nos bastidores da política, a imprensa local ou o pouco que ainda resiste dela, é chamada a fazer escolhas difíceis. Muitos preferem se calar, proteger seus vínculos políticos, preservar os cargos que ainda sonham conquistar. Outros, como eu, seguem escrevendo, mesmo quando é preciso cortar palavras, reescrever frases, recalcular riscos.

Mas a verdade, ainda que editada, resiste. Ela encontra brechas entre as linhas, ecoa nas entrelinhas e alcança quem ainda se permite questionar. Porque silenciar por medo é servir ao poder; resistir com palavras é servir ao povo.

Aos que tramam no escuro, aos que manipulam gabinetes ou usam tribunais para calar a mobilização popular, deixo um aviso: a cidade está atenta. O povo já entendeu o jogo, já sabe onde mora a covardia política.

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